A invasão dos ratos chineses - X
Não eram nem sete e meia quando eu e Karen chegamos na Zimmer e, mesmo antes de entrar na sala de reuniões, eu saberia quem estava falando apenas pelo teor emblemático e polêmico do discurso. Gus falava alto, como sempre, e não nos viu entrando na sala.
– Olhe em torno de si e veja como é fácil perceber as razões de tudo que estamos vivendo. Você sabe que o pensamento, infalivelmente, toma formas. Para agir é preciso antes pensar. Por isso as nossas ações e decisões representam um reflexo do quão profundo é nosso pensamento. Assim é! Portanto, a enrascada que vivemos resulta da consciência coletiva de uma nação cujo povo, embora rico de espírito, ainda não aprendeu a pensar o suficiente para se portar à altura de problemas de grandes proporções. E veja só a incapacidade de nosso poder público para agir com rapidez frente à gravidade da situação que estamos vivendo agora...
Gus gesticulava muito enquanto falava, tendo Ivinsky como seu atento ouvinte. Quem não o conhecesse poderia pressupor facilmente que ele estava muito irritado, tal era o volume da sua voz. Mas essa era somente uma de suas particularidades. Possuía muitas outras que faziam as pessoas o considerarem muito estranho, quase bizarro. Apenas depois de conviver com ele e conhecê-lo melhor aprendia-se a apreciar as suas excentricidades. Em suas conversas, por exemplo, ele conseguia discutir ciência, filosofia, esoterismo, religião, política e futebol numa conversa cuja duração não ultrapassasse 30 minutos. Para isso ele começava a falar de um assunto e, a qualquer momento, dizia “sobre isso vou abrir um parênteses...” e então passava a comentar outro assunto, e ficava tão empolgado com o seu “parênteses” que raramente retornava ao que estava falando antes e, assim, falava de tudo um pouco.
Se fosse compará-lo com alguém, certamente o faria com Spock, o célebre alienígena de raciocínio reto e pouco senso de humor, personagem do cinema clássico pré-terceiro-milênio, cujo nome é algo parecido com Guerra nas Estrelas, aliás, o nome certo é Jornada nas Estrelas. Gus, como Spock, era muito prestativo e inteligente, no entanto tinha comportamentos excêntricos e era extremamente anti-social em certas ocasiões. Ele adorava passar o máximo de tempo possível sozinho e, nessas circunstâncias, sempre fazia ou descobria alguma coisa qualquer, mesmo que não representasse ou servisse para nada de concreto.
– Mas os ratos não são produtos da consciência coletiva, meu caro Gus. – Eu disse logo que ele parou de falar, em tom de boas vindas. Fazia uns dois anos que não o via e notei que estava um pouco mais gordo e que seus cabelos estavam levemente grisalhos.
– Veja só! – Gus falou, estendendo-me a mão. “Veja só” era o que normalmente dizia como uma forma de cumprimentar as pessoas. – Você ainda toma cerveja?
– Claro!
– Bom saber. Eu trouxe algumas garrafas de una cerveza cubana. Lá em Cuba ela é considerada como uma pérola.
– Então, poupe-nos das cerimônias e apresente o manjar!
E, para minha surpresa, ele me pediu no mesmo momento para acompanhá-lo até o subsolo, onde o seu carro estava estacionado. Chegando lá, pegou duas garrafas bem geladas.
– Não seria melhor bebermos à noite, Gus? – Eu falei, olhando o relógio. Eram 7h35 da manhã.
– Obviamente não, meu caro, isso aqui é um verdadeiro dínamo de sinapses! – E ergueu as garrafas acima de sua cabeça como se fossem troféus.
Então, contou que o seu Loyola Prim, tecnologia indiana, era um dos poucos carros que já vinham de fábrica com um minirefrigerador. Por isso ele podia gelar as suas cervejas de Cuba e bebê-las na hora que bem entendesse. E a conversa discorreu sobre a indústria automobilística. Claro que não perdi a chance de fazê-lo recordar do quanto, décadas antes, ele dizia que jamais elegeria um automóvel como meio de locomoção, andaria apenas a pé, de bicicleta e de metrô, mas jamais dirigiria um carro.
– Os carros elétricos não poluem e, além disso, hoje eles são mais seguros. – Justificou-se.
– Já reparou que cunhamos todas as tecnologias e, em lugar de moldá-las às nossas vontades e necessidades, sem perceber moldamo-nos a elas, cada vez mais prostrados aos avanços tecnológicos? – Pensei muito para formular a questão, mas não deixei Gus responder. Mudei de assunto, com medo do tamanho da resposta.
Lembro-me que naquele dia imaginei e desejei estar no campo ou em uma ilha deserta, sem nenhum tipo de tecnologia moderna, apenas com um bom livro, uma vara de pescar e uma caixa de fósforos. Em 2051, ninguém mais era capaz de fazer qualquer coisa sem se dobrar submisso à indispensabilidade das máquinas. Realmente algo muito triste.