Humano, Não-humano e o que Vem Depois

Esta escrita é um registro de algo incomum. É o registro da minha vida depois que deixei de ser humano. Não será um texto longo, consequência da pouco movimentada vida que eu tive desde esse dia pra cá. Escrevo, pois estou para me transformar mais uma vez. Vou atravessar o túnel de luz. Gostaria de falar um pouco dele, mas não sei nada sobre ele. Há muitas especulações sobre o que vem depois, mas apenas isso. Todos os não-humanos que vivem aqui evitam fazer a travessia. Eu a desejo.

Tornei-me não-humano por amor. Amava um homem. Esse homem não me amava, mas teve o cinismo de usar do meu sentimento quando foi mais conveniente para ele. Esse homem tinha um filho. Um bebê ainda. Essa criança adoeceu. E de tão grave a doença, o médico, de alguma forma inteirado dos artifícios sobrenaturais, indicou ao pai essa possibilidade de cura do filho. Informado dessa possibilidade, o pai veio me procurar. Consciente do efeito que tinha sobre mim fez a proposta. Eu aceitei.

Para mim, era doloroso ver o homem a quem eu amava num sofrimento tão intenso por causa do seu filho. No momento da proposta, senti o baque do que ele me propunha. Mas, eu não tinha consciência do isso significava. Aceitei a proposta, mesmo sentido uma dor que me avisava, que me alertava para não aceitar. Afinal, sendo ele pai e amando o filho, não teria ele coragem de ceder a sua humanidade para a cura do próprio filho?, eu pensei, mas tarde demais.

Combinou-se o horário em que ele viria me buscar e me levaria ao ritual. Eu tinha minhas leituras esotéricas. Sabia de alguma coisa sobre essas possibilidades espirituais. Havia lido alguma coisa sobre a Ordem dos Não-Humanos, mas sempre acreditei ser isso fruto da imaginação de algum desocupado. Não era. Era real e estava diante de mim. Estava diante de mim e junto ao meu futuro como não humano.

Entramos num prédio de fachada simples. A entrada de uma casa. Por dentro, um templo. Descemos em direção ao subsolo. No corredor, altares espalhados dos dois lados, com imagens dos santos cultuados pela Ordem. Todos tinham o pescoço um pouco mais alongado, as orelhas um pouco afastadas do corpo, mão e pés mais cumpridos, os olhos com as pupilas no formato da pupila dos gatos. Quando mais caminhávamos para baixo, mais a imagens tornavam-se mais realistas. Ninguém me falou, mas eu percebi, e no momento em que eu percebi, o medo tomou conta de mim. Não eram imagens de madeira, como eu pensava a princípio. Eram os próprios não-humanos, que não morriam e iam sendo colocados ali para seguirem sua vida, já que não conseguiam mais andar ou se mexer. Fiquei horrorizado, mas não tive tempo de reagir. Mãos fortes me agarram e me empurraram para o centro do templo subterrâneo.

Fiquei nu. Fui colocado numa espécie de banheira que ficava na raiz de uma grande árvore. Víamos apenas a raiz, o tronco e as folhas podiam ser visto do lado de fora do templo. Ao meu lado, foi colocado o bebê que receberia a minha humanidade. Ele nem se movia. Tão pequeno. Senti pena. Mas, também me senti bem por que iria ajudá-lo. Nesse momento, peguei a criança no colo e comecei a acariciá-la. Ela não reagia de tão fraca. Então começou. A árvore começou a movimentar as suas raízes. Pareciam tentáculos de um polvo. Aos poucos, esses tentáculos foram penetrando todos os orifícios existentes em mim e no bebê. Boca, nariz, ouvidos, ânus, canal seminal. Eu e o bebê fomos invadidos por todos eles.

Ao poucos não me senti mais eu. Sentia-me diferente. A minha sensação de humanidade ia desaparecendo aos poucos. E na mesma velocidade que a minha humanidade desaparecia, o bebê reagia. Aos poucos, ele foi se mexendo, se incomodando de ter todos aqueles tentáculos dentro dele. Foi com dificuldade que o que faltava da minha porção humana foi passada para ele. Os tentáculos saíram de nós. Com o bebê ainda no colo, caminhei na direção do pai, que olhava fascinado para a criança. Devo confessar que ainda acreditei que nesse momento, ele me olharia, me agradeceria e retribuiria todo o amor que dediquei a ele. Ele pegou o bebê no colo, me olhou, me agradeceu e foi embora.

Eu fiquei aqui, esperando não sei bem ao certo o que. Mas, fiquei esperando. Esperei por muito tempo, até ter total certeza de que o que eu esperava não viria. A partir desse momento comecei a me integrar nessa comunidade. Aproveitei para me conhecer enquanto não-humano. Na verdade, não havia o conhecer. Eu continuava igual, desejava as mesmas coisas de quando ainda era humano. Só que agora, eu não era mais humano. Eu era outra coisa e os outros que, também, eram essa outra coisa, não tinham nenhum pouco de preocupação de descobrir o que era aquilo no que eles tinham se transformado.

Descobri que o maior desejo, principalmente dos mais velhos entre nós, era voltarem a ser humanos. Perguntei se isso era possível. Disseram que se a pessoa que recebeu a sua humanidade morrer antes de gastá-la toda, a humanidade era obrigada a ser devolvida para você. Temi nesse momento saber, algum dia, que aquela criança havia morrido. Isso diminui como o tempo. Fiz amizades e em todas as conversas, os assuntos giravam sobre a humanidade e que eles fariam se a recebessem de volta. Lembrei das conversas dos meus pais sobre ganhar na loteria e o que eles fariam com todo aquele dinheiro.

A notícia da morte da criança chegou até mim. Outra doença a castigou. Não senti nada. Nem por ela nem pelo pai. A minha humanidade foi devolvida. Mas, ao contrário do que imaginavam os meus companheiros, não senti nenhuma alegria. Não queria voltar a ser humano. Fiz o que achei melhor. Dei minha humanidade, que ainda estava no início, para um amigo que fiz e que se me tornou muito caro. No princípio, ele achou que fosse brincadeira, mas com a minha insistência viu que eu falava sério. Depois do ritual do repasse, fiquei achado que poderia ter causado a ele um problema, pois afastado há tanto tempo como estava, talvez, não soubesse mais como se comportar lá fora. Afinal, ele quase estava indo para o altar. Mas, em pouco tempo relaxei: ele aprenderia.

Passei a pensar o que faria dali para diante e só uma idéia me veio: o túnel de luz. Tinha ouvido falar muito pouco dele. Aliás, como disse ao início, apenas as lendas sobre ele. Esse era e é um assunto espinhoso na Ordem. Todos temem esse túnel. Tenho a sensação de uma insensibilidade e junto dela a sensação de um chamado. Não interessa mais o que eu poderia ter feito como humano ou o que eu poderia fazer como não-humano. Interessa agora dar mais um passo.

Desculpem se não tenho nada para falar, uma despedida para realizar. Tomem esse texto assim. Uma fala, uma despedida. Não analiso, não interpreto. Se não falo palavra apropriadas é por que não tenho o que contar. Se não me despeço é por que não tenho a quem me despedir. Só deixo um questionamento: se já não sou mais humano e por tudo o que as lendas contam, parece que também vou deixar de ser um não-humano, no que vou me tornar? Daqui a algumas horas atravesso o túnel.