A voz das harpas
A luz foi tão ofuscante que Candido não teve outra alternativa que não fosse parar o caminhão junto ao acostamento. A claridade era pálida e tão intensa que cegou o motorista que dirigia àquela hora da madrugada.
Candido Sanches era motorista de caminhão já fazia quarenta anos e trabalhava rotineiramente trafegando pelas vias interestaduais durante a noite, principalmente nestes últimos anos em que segundo os jornais, o fluxo de importações e exportações estavam empurrando a economia nacional para cima fazendo com que muitos motoristas como ele tivessem de trabalhar em jornadas diurnas e noturnas para cumprir os prazos cada vez mais curtos de viagem.
Naquela noite em especial ele estava bem, dirigia à base de café e mantinha a garrafa térmica no assento ao lado, vinha tentando se manter longe dos remédios e das drogas estimulantes, mas estava bebendo café como nunca antes na vida; em uma hora tinha tomado quatro copos.
Virando o volante para a esquerda ele encostou o gigante da estrada no acostamento, seus olhos estavam lacrimejando pelo excesso de luz que apareceu de repente subtraindo a visão da estrada. Candido, em princípio, pensou que fosse um outro automóvel vindo em direção contrária, mas logo desistiu dessa idéia, porque a luz perdurou por alguns segundos e nenhum som de carro se fez presente.
Tão repentinamente quanto surgiu, a luz desapareceu sem deixar vestígios; não havia nada na frente do caminhão, a não ser a estrada pouco iluminada na qual aquele veículo era o único em quilômetros.
“Que estranho!”_ pensou Candido lembrando das histórias noturnas e soturnas que seus amigos motoristas costumavam contar sempre que se reuniam nos pontos de parada espalhados pela malha rodoviária nacional.
Eles costumavam dizer que vez por outra nas estradas Brasil à dentro, deparavam-se com algum fenômeno sobrenatural; costumavam relatar aparições de pessoas no meio da estrada, geralmente crianças caminhando pelo acostamento, crianças descalças, pálidas e desgrenhadas caminhando em meio a madrugada por estradas sem qualquer vestígio de moradia por quilômetros ao redor.
Outros relatavam aparições de animais, sombras voadoras e, é claro; as luzes no céu; luzes incandescentes que desciam do céu e iluminavam a noite. Algumas pessoas chamavam de discos voadores; outros diziam ser manifestações espirituais. Candido não sabia e não queria saber, nunca tinha visto nada daquilo, se bem que por vezes coisas muito estranhas ocorreram com ele; porém, nunca foi algo mais do que um barulho mais amedrontador ou um vulto qualquer.
Ele nunca viu verdadeiramente um fantasma como os outros diziam e sempre atribuiu as visões dos amigos ao uso indiscriminado dos remédios contra o sono, aquelas coisas mexiam com a mente das pessoas e Candido sempre teve muito medo de perder a lucidez; ficar louco era, para ele, uma punição terrível que não estava disposto a enfrentar. Por isso sempre que algum companheiro lhe presenteava com um frasco de arrebite ele agradecia e em seguida se livrava do mesmo.
Quando a luz finalmente desapareceu, Candido deu partida no caminhão novamente e reiniciou a viagem, precisava estar no local de destino assim que o sol surgisse e do jeito que tinha viajado até aquele momento talvez ainda tivesse tempo de sobra.
A estrada seguia por um aclive que atravessaria uma ponte mais na frente, já tinha passado ali outras vezes; era uma ponte bem construída e firme, mas antes da ponte a estrada cortaria um descampado que provavelmente durante o dia servia de pasto para pequenos rebanhos da região ou para animais avulsos.
Quando o caminhão chegou a este descampado Candido viu algo que não era comum, principalmente em plena madrugada; o descampado se estendia até aonde a vista podia alcançar, mas a noite consumia esta visão pelo fato de não haver luminosidade natural no ambiente; entretanto, naquela noite não só havia luz abundante ali como também muitas pessoas.
Ao lado esquerdo da estrada uma multidão de pessoas estavam perfiladas como um exército, e uma grande claridade tomava todo o ambiente, mesmo sem que nenhum poste de iluminação estivesse ali; era uma luz pálida, mas bastante veemente; exatamente como a que ele vira momentos antes.
Aquelas pessoas estavam perfiladas em grupamentos bem divididos, e em fileiras muito bem agrupadas; a visão lembrava as arquibancadas de um estádio de futebol, com a diferença de que não faziam o menor ruído. Alguns caminhavam de um lado para o outro, como que inspecionando as fileiras e todos quanto Candido podia ver estavam se ajeitando de algum modo. Uns mexiam em suas roupas claras, outros esfregavam as mãos, outros coçavam a cabeça e outros olhavam para cima em direção ao céu noturno.
O motorista não conseguiu fazer outra coisa; parou novamente o caminhão e abriu o vidro a fim de poder ver melhor; talvez aquela fosse a primeira experiência sobrenatural da vida dele.
As pessoas estavam a mais de cem metros de distância do caminhão, mas as primeiras fileiras avançaram numa marcha perfeitamente coordenada e se abriram numa formação que parecia em “V”; parte para a direita, parte para a esquerda. Um segundo grupamento avançou na mesma marcha para tomar o lugar do primeiro e assim toda a formação até onde era possível ver, se moveu alguns metros para frente.
O segundo grupo, carregava cada um, alguma coisa em suas mãos, Candido não sabia o que era; tentou contar o número de pessoas ali, mas logo desistiu, seria um esforço inútil tamanha quantidade de indivíduos.
Ele desligou o caminhão e aguardou; sabia que algo extraordinário estava ocorrendo ali, mas não tinha a idéia exata do que podia ser. Portanto permaneceria observando sorrateiramente de dentro da boléia, visto que aquela multidão parecia ignorar a presença do veículo.
O segundo grupo também se dividiu ao meio, parte para um lado e parte para outro, e um terceiro grupamento ficou à mostra, porém estes seguravam algo que Candido conhecia muito bem. Aquele incontável grupo de pessoas trazia um incontável número de harpas; cada um possuía a sua e pareciam se preparar para tocá-las; só então ele percebeu que os dois primeiros grupos também tinham seus instrumentos, eram harpas de mão, pequenas, que só, dias depois ele foi descobrir que se chama liras.
_É um exército músico! _ balbuciou impressionado.
O primeiro grupo, que agora ocupava a posição mais aos flancos da formação, começou a dedilhar os primeiros acordes em suas liras; era um som longe e doce, mas o segundo grupo também acompanhou em seguida engrossando o volume do som e tornando ele mais forte, porém não menos doce.
A melodia ganhou intensidade quando os músicos do terceiro grupo entraram no compasso. Uma música tão poderosamente arrebatadora que o caminhão pareceu ser atingido pelo som; a boléia balançou, ou foi a mente de Candido que ficou instantaneamente entorpecida pelos acordes fora do comum.
Como que seduzido pelo canto de uma sereia, Candido se pegou abrindo a porta e descendo do veículo; caminhou abandonando o automóvel atrás de si, sem se importar com mais nada que não fosse ouvir aquela melodia angelical; seu corpo parecia ouvir um chamado subliminar na melodia e obedecia sem que ele tivesse escolha racional. Era algo instintivo, mas que ao mesmo tempo era diferente de tudo o que já sentira; alguma coisa dentro dele, algo latente, intrínseco, ancestral. Como se o seu espírito ouvisse uma voz familiar e estivesse ansioso por responder ou encontrar o dono de tal voz.
Candido era um homem com muita experiência de vida; trabalhando desde cedo, não teve muito tempo para estudar ou desenvolver capacidades intelectuais mais apuradas, embora fosse extremamente hábil em quase tudo o que fazia, mas ele tinha certeza de que aquilo que estava acontecendo ali não podia ser explicado por pessoa alguma por mais capacitada que esta fosse. Era uma experiência quase onírica, mas ao mesmo tempo bastante real.
As liras e harpas continuavam em sua canção orquestrada, e o som estava mexendo com ele a ponto de roubar-lhe as forças. Candido olhou para as próprias mãos e notou que tremiam incontrolavelmente, não por medo ou desespero; de fato, ele tinha percebido a total ausência desses sentimentos, estava tão cheio de felicidade incontida, tão tomado por uma alegria desconhecida que sem perceber caiu de joelhos e quando se deu conta já estava chorando copiosamente; as lágrimas pareciam lavar-lhe completamente; como se aquele choro estivesse expurgando algum mal em seu interior. De repente a luz voltou; ele não viu de onde ela veio, mas continuou ali parado chorando e rindo ao mesmo tempo; em pouco tempo a mente de Candido viajou por todos os fatos relevantes de sua vida até aquele momento, como numa overdose de memórias; e a voz das harpas parecia guiá-lo em todo aquele processo.
Tudo silenciou; não havia mais pessoas, não havia mais luz, e não havia mais a magnífica voz das harpas e liras entoando seu cântico miraculoso. Somente Candido permanecia ajoelhado no chão recuperando-se daquela insólita experiência; certo de que tinha presenciado algo grandioso; tão grandioso que ele jamais contaria a alguém.