PEIXES
Por não haver mais água seu odor tornara-se insuportável. Sentia seu próprio cheiro, e o contato consigo mesma era demasiado próximo. Era necessário ocultar o odor. Dentre os itens comprados — procurou nos pacotes recém colocados sobre a mesa — não havia perfume algum, não havia álcool que auxiliasse na limpeza ou no consolo quando o fim estivesse realmente próximo.
O calor fazia com que o cheiro aumentasse, transpirasse tanto que, com a pele molhada, por alguns instantes, ao abrir disfarçadamente as cortinas para espiar, sentisse arrepios. Nauseava com o cheiro, por isso sentia arrepios. E os arrepios eram presságios. Mas não havia o que prever.
Não vira no tarô, não consultara cartomantes em busca de respostas. O fim fora proclamado ao vivo na televisão. Falaram diretamente com seus temores, olhando fixamente em seus olhos, à sua aproximação contínua, diária, com a televisão esperando algum dia ouvir. Enfim, ouvia.
Pingou os últimos reais em combustível, caso fosse necessária uma fuga. Cogitara, ao aguardar o dinheiro diluir-se em álcool, se permitir ter o frentista, perpetuar com um filho um resto de si. Analisando o corpo do frentista e o seu próprio que fedia, ignorou-se antes da tentativa.
No supermercado as prateleiras permaneciam cheias e ela não compreendia. Talvez ainda não soubessem e por esse motivo olhavam-na recriminadores em sua compra desesperada, os carrinhos se enchendo de enlatados, a conferência rápida nos prazos de validade.
De repente, nada mais era válido. Nada teria valido a pena, e as pessoas sabiam e por isso não compravam.
Se lá fora o mundo se extinguia, sucumbia a sua própria deterioração, além dela, ninguém via. Ninguém via. O sol queimava. Tentando sentir o sol, ele queimava, não por que há meses se trancara naquele apartamento e decidira prezar pela água e eletricidade -- já que escassos --, queimava por que era o fim.
A cada dia era o fim. O dia findava em seu apartamento à noite e a sensação de findo chegava. Nos outros prédios as luzes mantinham-se ainda. Prolongavam o dia.
Quando o próximo dia amanheceu para novamente terminar, tocaram a campainha. A campainha funcionava ainda e ela nunca mais ouvira seu som. Esquecera-se do som.
O mundo sobrevivera ao término. O som seria o resgate aos sobreviventes? Acreditou que era o resgate e aceitaria ajuda por que todas as latas amontoavam-se vazias por todo o apartamento e o cheiro do resto apodrecido fundia-se ao seu. Mas sobrevivera até ali. Era sobrevivente. O mundo acabara e ela vivia ainda.
Destrancou as muitas travas que improvisou para a porta, afastou os móveis que impediam possíveis saqueadores de adentrarem e, finalmente, deparou-se com o corredor.
Ofereceram-lhe “bom dia”.
— Há quanto tempo! Estava viajando?— disseram-lhe para contribuir com o estranhamento. Ela não respondeu.
Caminhou pelo corredor. Tateando as paredes, procurava recordar algo remoto, antigo e reconhecível. Reconhecia o caminho que levava ao elevador.
A caixa quadrada fora o princípio.
Principiara com a observação da TV desligada. Da TV, observou o aquário e obteve a resposta: movimentando-se daquela forma, as bolhas elevando a temperatura, fervendo, o peixe boiando, a água chegaria e invadiria o prédio. Com as janelas devidamente fechadas, o mar não iria avançar, um tsunami não viria levá-la embora.
O elevador se abriu e lá estava ele.
O mar aproximava-se tão próximo que, se não recuasse, acabaria por levá-la consigo. Ela recuou e o mar repetiu seu movimento. As ondas traziam e afastavam seu temor, trazia-o até seus joelhos, depois subia. E quando o medo cessou e o mar a tomou para si, deparou-se novamente com seu peixe.