O DILEMA DO CHICO
O DILEMA DO CHICO
A dúvida está me consumindo. Se eu pudesse revelar para alguém...
O nome dele era Chico. Todos eram chamados de Chico, porque não havia distinção. Era assim que os tratadores os chamavam: uns Chiquinho, outros Chicão. Às fêmeas chamavam de Chica. Era um lugar muito sociável onde viviam. Aliás, são características dos porcos a inteligência e a sociabilidade. Eles são capazes de passar horas a brincar. Criam laços de amizades muito fortes e se protegem mutuamente. Reconhecem os seus amigos, cumprimentam-se por contato nariz com nariz ou emitindo sons característicos de saudação. Usam o nariz para contatar os outros, se conhecerem e explorarem o seu meio, por sua enorme capacidade olfativa. O nariz é a sua janela para o mundo. Estudos recentes de cognição animal, inclusive, mostraram que os porcos são mais inteligentes que os cães e conseguem saber o que se passa pela cabeça dos outros porcos, conhecem os seus nomes, quando são nominados pelo homem, e gostam de ouvir música, de brincar com bolas e outros objetos. Também gostam de receber massagens. São animais dóceis, talvez seja por isso que no calendário chinês, as pessoas nascidas sob o signo de porco são classificadas como tipicamente boazinhas. Buscam a harmonia, tentam evitar qualquer tipo de discussão e não guardam ressentimentos. Por essas e outras, terão sempre amizades duradouras e esperam que tolerem suas fraquezas com a mesma condescendência que agem com os outros. É fácil confiar em pessoas tão bondosas e é essa ingenuidade que os fazem vítimas dos embrulhões da vida.
Os Chicos daquele lugar eram tratados de maneira diferente dos que viviam em unidades pecuárias. Era uma escola. Os porcos que vivem em unidades pecuárias não conseguem desenvolver os seus comportamentos naturais. Vivem em espaço de chão cimentado, sem a oportunidade de fazer o que um porco mais gosta e necessita: explorar o ambiente e o solo, correr e se banhar na lama para se refrescar. Ao contrário do que os humanos pensam, os banhos de lama são atos de higiene e bem-estar. Não tem o sentido negativo que lhes é atribuído, porque são, por natureza, muito asseados. Tratam da higiene uns dos outros em sinal de afeto e sociabilidade.
Ali na escola eles podiam fazer tudo que gostavam. Um espaço para brincar e conviver, alimentar-se, criar amizades, fazer ninho e descansar e eram alimentados com comida farta e limpa. Podiam se acasalar de acordo com os padrões naturais, inclusive praticar o ritual próprio, pelo qual os machos atraem e conquistam as fêmeas. As porcas são mães cuidadosas e se utilizam de uma quantidade diversa de sons para se comunicar com os filhotes.
Ao contrário, nas unidades pecuárias, os leitões são logo separados das mães e são alojados junto com outros que nem se conhecem e, por isso, ficam chamando pelas mães com sons lamentosos, frequentes e distintos. As porcas passam a maior parte de sua vida em celas de gestação. Um espaço ínfimo que mal lhes permite mexerem-se e são continuamente engravidadas, até que sejam abatidas. Os machos são castrados para a engorda, quando não são mantidos solitários em pequenas celas a fim de lhes retirarem o sêmen para ser usado em inseminação artificial.
Chico era um porco feliz. Só uma coisa misteriosa acontecia de vez em quando, que o deixava ao mesmo tempo apreensivo e curioso. Alguns de seus amigos eram levados do chiqueiro e não voltavam. Ninguém sabia o que acontecia com eles. Mas, não tardou, ele descobriu para onde iam os felizes Chicos.
Certo dia ele foi um dos escolhidos. Era uma manhã triste, fria, chuvosa e cinzenta. Ele e um dos companheiros foram levados dentro de uma gaiola apertada e desconfortável, num carro sacolejante. O veículo parou depois de algum tempo e passaram-se pelo menos quinze minutos até que abriram a porta. Apareceram dois homens cobertos com capas de chuva. Estava chovendo muito naquela hora. Foram levados por um corredor comprido, cheio de portas, todas fechadas. Os homens entraram com a gaiola numa sala onde estavam sentadas algumas pessoas, parecia um laboratório. O que os Chicos viram, deixou-os assustados. Existiam diversos ossos espalhados pelas paredes, como se fossem quadros e em cima de um balcão, em exposição, um esqueleto de um animal que tinha o formato, sem dúvida, de um porco.
O Chico ficou estarrecido com o que ocorreu em seguida: entrou um homem vestido com um avental branco, desejou bom dia às pessoas que estavam sentadas e disse: “hoje vocês vão conhecer o que eu considero essencial na profissão que escolheram. Vão aprender a dissecar um porco”. Pôs luvas cirúrgicas e uma máscara sobre o nariz e boca e pediu a dois homens, que pareciam seus auxiliares: “Tragam o bicho”.
Quando os homens foram em direção à gaiola, eles entenderam quem eram os bichos. Agarraram o seu amigo, que começou a se debater e a grunhir muito alto, desesperado. Imobilizaram suas pernas com cordas e o depositaram sobre uma bancada.
Chico nunca mais esqueceu a expressão nos olhos do seu irmão: medo, angústia, terror, tudo misturado. Chico olhava a cena também com desespero, sabendo que teria o mesmo destino.
“Pode parecer cruel.” – voltou a falar o homem de avental branco. – “Mas é necessário, a fim de que o animal não sofra e grite menos, que lhe apliquemos choque, para que fique atordoado.” Fez sinal para que um dos auxiliares encostasse dois cabos na cabeça do seu companheiro, que ao contato dos fios, estremeceu e gemeu uma agonia. Em seguida pegou um punhal em uma gaveta e mostrou para os alunos. “O estilete tem que estar bem afiado para que atinja com facilidade a jugular do bicho.” – Falou. Em seguida introduziu o punhal no pescoço do animal que grunhiu de maneira que Chico nunca mais vai esquecer. O grito pela dor da morte começou alto e foi diminuindo até estertor, na medida em que seu sangue escorria para uma bandeja, onde ficou a vida do seu companheiro, que jazia inerte sobre o balcão.
Chico assistiu, em estado de agonia, um ser igual sendo sacrificado, sangrando até morrer. Ele ainda viu o corpo do infeliz ser jogado em um caldeirão fumegante de água escaldante, com a finalidade, depois viu, de facilitar a retirada dos pelos que lhe cobriam o corpo.
“Agora que o porco está limpo, eu vou lhes mostrar como se extrai dele os pedaços mais saborosos e como se aproveitam todas as partes do animal. Esses porcos são especiais, porque há preocupação ambiental na criação deles: foram produzidos em fazenda com certificado de manuseio humanitário. São porcos felizes, criados em liberdade, num ambiente limpo, para que, livres de toxinas, tenham a carne macia e saborosa, para ser utilizada nos nossos restaurantes. Quase tudo é aproveitado, da cabeça ao rabo. É, segundo um dos meus princípios, uma maneira de justificar a morte do animal. Aproximem-se, por favor.”
O Chico não viu mais nada, porque os alunos se juntaram em volta do balcão, impedindo-lhe a visão. O Chico arriou a cabeça e sentiu escorrer lágrimas queimando-lhe os olhos. Ele compreendeu tudo e ficou aguardando, resignado, a sua vez.
“Agora os senhores vão passar para o outro ambiente, a cozinha, onde eu vou ensinar a preparar os mais deliciosos pratos com a carne. Como está chovendo muito e faltou quase a metade dos alunos, não vejo necessidade de utilizar o outro porco.” - Disse o homem de avental branco, era um Professor, e deu instruções aos auxiliares para devolverem o Chico ao chiqueiro. Ele ainda olhou para trás, quando estavam passando pela porta e viu um amontoado de ossos sobre o balcão. O que restou do seu companheiro.
Quando chegou de volta ao chiqueiro, evitou o contato com seus curiosos amigos, que vieram, como de costume, encostar os narizes no seu. Era a primeira vez que um deles voltava, estavam curiosos. Chico se afastou escondendo os olhos. Passou a ser um porco triste e por isso evitavam levá-lo novamente. Assim ele assistia a cada semana, a partida de companheiros seus, cujo destino só ele conhecia e convivia com a dúvida se deveria ou não revelar aos demais.
“Conto ou não conto. Eu realmente não sei o que fazer. Se eu revelar aos meus amigos, ora tão felizes vão sofrer, também, com a expectativa. Eu não sei se é o melhor caminho vê-los tristes sabendo da verdade, ou enganados, desconhecendo o que lhes está reservado, mas felizes enquanto viverem. Será que vale a pena informá-los, torná-los tristes para poupar-lhes a vida como a minha está sendo, como percebi? Até quando? Reviver o Velho Major, o da Revolução dos Bichos?* Vale a pena viver desse jeito? Se todos estiverem tristes, não será, também, o fim? Eu não consigo fingir que estou feliz. Talvez fosse a saída.
*A Revolução dos Bichos – Jorge Orwel