O ALMOÇO

Quando Givanildo voltou com as mãos vazias, teve uma agradável surpresa: Zefa, sua mulher, revirava com a colher de pau o velho caldeirão remendado, e um agradável aroma de carne subia pela tampa escurecida e amassada. O homem aproximou-se curioso, bolhas nos pés de tanto andar sem conseguir comida, e a danada da mulher nem aí, cantarolando uma modinha dos tempos de Lampião e Maria Bonita!...

– Oxente, Zefa, mas o que diabos tu tá cozinhando aí, muié?... Eu já num te falei que num quero saber de sopa de pedra de novo?

Zefa sorriu, deixando à mostra os poucos dentes que ainda lhe restavam, e olhou para o marido com ar de superioridade:

– Se avexe não, Givanildo, que num é sopa de pedra. Tu num tá sentindo esse cheiro, home? E isso lá é cheiro de sopa de pedra?...

– Não? – ele parecia não acreditar nela. Chegou perto da panela e tentou levantar a tampa, mas Zefa enfiou-lhe a colher de pau entre os dedos e o colocou para fora da paupérrima cozinha.

– Mas que pressa desgramada é essa, home?... Tu nunca visse comida não? Vai ver se tira essa poeira do couro, que é pra mode num sujar a mesa.

Givanildo aspirou novamente aquele cheiro delicioso de ensopado, esfregou as mãos e saiu sorridente em direção ao poço. Jogou o balde, puxou a corda pela manivela e retirou a água barrenta. Antes de entrar no banheiro de pau a pique, olhou para o céu, na esperança de encontrar alguma nuvem que trouxesse refrigério para aquele ano amaldiçoado, mas tudo o que conseguiu enxergar foi um bando de urubus rondando próximo ao leito vazio do riacho, que passava a algumas dezenas de metros do casebre. E o sol abrasador do sertão pernambucano, que não perdoava a família do pobre sertanejo, alvo fácil daquela seca medonha que já durava sete meses.

Apesar da vida dura, Givanildo ainda tinha ânimo para assoviar uma velha canção que aprendera com seu pai. O velho adorava Luiz Gonzaga e deixara como única herança para o filho, além do barraco, um repertório considerável de forrós e modinhas cantadas pelo rei do baião. Enquanto assoviava e se esfregava, ficava se perguntando onde raios a mulher conseguira comida naquele fim de mundo. Ele saíra bem cedo para caçar algum calango, mas parece que até mesmo o réptil mais resistente do sertão não resistira à seca, e desaparecera quase que totalmente das paragens. Ah, mas a Zefa era uma danada! Ela tinha que contar onde arrumou comida, ora se tinha...

Terminou de tomar banho e rapidamente dirigiu-se para dentro de casa. Passou pelo quarto dos filhos, onde os três se amontoavam no chão da tapera, dormindo para esquecer da fome. Acordou os três e mandou que fossem lavar as mãos, como o moço do povoado havia ensinado, por causa das tais bactérias. Mas a expressão de urgência nos olhos das crianças o fez esquecer as noções básicas de higiene aprendidas com o médico itinerante que de vez em quando fazia uma visita relâmpago ao povoado mais próximo. Tocou seus bezerrinhos esfomeados para a cozinha, onde os pratos rachados já estavam postos fumegantes, aquele aroma subindo em espiral até o teto de palha. Ao olhar a comida, Givanildo salivou tanto que parecia estar bebendo água. Nem lembrava mais quanto tempo fazia que não comia um frango como aquele! Os meninos atacaram o prato como se fossem morrer em seguida. Zefa, dona de casa experiente, mestra em fazer render a pouca comida, encheu os pratos de farinha, único alimento que nunca faltava por aquelas bandas, e misturou um pouco da carne no meio. Mas ninguém pareceu perceber o truque, eles comeram que lamberam os beiços.

Givanildo, satisfeito o apetite, tratou de satisfazer também a sua curiosidade:

– Zefa, essa comida tava porreta, minha veia! Mas me diz uma coisa: onde tu me achou frango, muié, que eu andei léguas pela caatinga e num vi nem um calango pra mode trazer pra casa?...

Zefa abriu novamente aquele sorriso maroto:

– Mas deixa de ser encrenqueiro, home, tu num já encheu o bucho? Que é que tu quer mais?... – e saiu rapidamente levando consigo os pratos sujos.

Givanildo olhou pela janela e viu a esposa sair em direção ao riacho para lavar os pratos e a panela. Na verdade, riacho era força de expressão, pois naquela época do ano, não passava de um fio de água salobra rodeado de pedras por todos os lados.

As crianças acabaram de comer e caíram no sono novamente, a lombeira do início da tarde fazendo seu efeito. Givanildo ficou tentado a fazer o mesmo, mas a curiosidade e o orgulho ferido por ter sido passado para trás pela mulher o deixavam tão incomodado que resolveu segui-la. Pensou em perturbá-la tanto que ela não agüentaria e contaria o segredo.

Saiu pelo mesmo caminho que Zefa, e seguia em direção ao riacho, quando foi atraído pelo brilho de algo deixado no chão, próximo ao matagal ressecado pelo sol. Aproximou-se mais, e para o seu espanto, reconheceu os pratos e a panela que Zefa levava ainda há pouco. Ouviu então a arruaça de um bando de urubus que disputavam um pedaço de carne pendurado num galho seco de árvore.

De repente, um grande pedaço de pano rendado foi jogado em cima das aves, que saíram em revoada para todos os lados, menos uma, que ficou presa embaixo do pano. Foi quando Givanildo ouviu, estarrecido, a voz de Zefa, que dizia:

– Obrigado, minha virge santíssima!... O jantar da minha famia hoje tá agarantido também!!!

Givanildo sentiu uma ânsia tremenda partindo do estômago e só teve tempo para se virar e começar a colocar todo o delicioso almoço para fora.