QUANDO MORRI:

QUANDO MORRI:

Conto de Roberto Carlos Cardozo

Todos pareciam tristes, alguns choravam mansamente, outros pareciam desesperados. As vozes eram confusas e a luz era pouca. Eu não conseguia ver-lhes os rostos. Aproximei-me e adentrei no prédio. Lá estava um caixão fúnebre e alguém estava sendo velado. Olho mais atentamente para as pessoas que se aglomeravam junto ao féretro, agora eu conseguia ver-lhes os rostos. Minha esposa e minha filha, mas não conseguia ver quem estava sendo velado. Chego mais perto, o calvo topo da cabeça, é por mim visto, aproximo-me mais e vejo com espanto, era eu que estava sendo velado.

Olho minha filha, que soluçava em planto abraçada em minha esposa, sua mãe. Aquela menina que com poucos dias de vida, ao ver-me esboçou um cálido sorriso de neném. Ela era muito afetiva comigo, cresceu vendo-me como o seu herói, ídolo e o melhor amigo. Costumava a dormir nos meus braços, eu sempre tinha que levá-la para a cama, com ela nos braços, levantava as cobertas e a colocava na cama, dava-lhe um beijo na face rosada, e ela, enquanto acordada, dizia boa noite vito. Quando tinha seis anos, eu a colocava na cama, no quarto contiguo ao meu, cobria-a com um cobertor, dava-lhe um beijo na bochecha e dizia:

- Se sentir medo chama o papai, tá?

- Sim, papia! Papai.

- O que é ?

- Estou com medo.

Eu me encostava ao seu lado e permanecia ali, juntinho dela, até que dormisse.

Lembro quando chegou à vez dela ir para a universidade, resolveu ter a mesma profissão que eu. Quando formada começamos a trabalha juntos. Ensinei-lhe todos os meandros da profissão. Com o passar do tempo ela se tornou tão competente e experta como eu, o seu paradigma, estava teoricamente preparada para reger a sua vida, sem a minha presença. Ela casou e foi morar em outra cidade. O velho casal voltara, ao viver antigo do começo do casamento. Agora que se viam no fim da vida, sozinhos, - sem amigos íntimos, já com a missão cumprida e à espera apenas do ponto final.

Quando sofri o enfarto que ceifou-me a vida, eu estava indo encontrá-la.

Eu tinha uma ideia muito obcecada e, quando morri, bastou isso para me manter preso ao mundo material. Tornei-me anfíbio desta vida e da outra. As causa que me amarraram nesta existência. Tudo proveu do desejo incontido de rever a minha filha, e só quando esse desejo se satisfaz o meu espírito se acalmou.

De repente tudo ficou escuro, tudo era trevas, nada se podia ver, senti-me inseguro enquanto meus olhos mortiços tentavam adaptar-se a escuridão. Permaneci parado a espera de não sei o que, mas no momento era a única coisa que podia fazer. Passado alguns instantes, senti uma mão ser colocada no meu ombro, uma voz me disse:

- Senhor eu estou aqui para orientá-lo, quando nas trevas, e levá-lo ao encontro da luz.

- Mas quem é você? Nós, nos conhecemos?

- Sim, apenas nos encontramos uma única vez. Eu lhe sou grato e por isso obtive a permissão para orientá-lo.

- Quando foi que nos conhecemos?

- Foi num domingo, o senhor parou o seu carro, para me auxiliar. Chovia muito e o meu fusca tinha perdido uma das rodas, estava eu, com minha esposa e o neném. Você embora cansado por haver trabalhado todo o domingo, e tendo de fazer mais de trezentos quilômetros para retornar a sua casa, mesmo assim, parou e retornou para Passo Fundo, deixando eu e minha família em casa, você naquele dia deve ter chegado a sua casa com uma hora de atraso.

- Mas me diga uma coisa? Se eu não o tivesse ajudado, eu ficaria aqui nas trevas indefinidamente?

- Você não, havia mais de dez espiritos para auxiliá-lo, eu fui o privilegiado. Mas, tem alguns que permanecem nas trevas, pois não tem ninguém que os queira ajudar.

Segui o meu guia pelas trevas, nada via ou ouvia, passados alguns instantes, vejo uma luz ao longe, um resplendor tão claro que me fez lembrar a claridade de uma solda elétrica.

De repente fomos envolvidos pela luz, meu guia, tirou a mão do meu ombro e seguiu ao meu lado. A terra era a mesma, porém tudo estava modificado, senti o já familiar arrepio de espanto maravilhado enquanto os meus olhos tentavam inutilmente abarcar toda a imensa beleza que contemplavam. Tive a perturbadora sensação de estar a transpor um limiar invisível para outro mundo.

A atmosfera parecia mais suave, a brisa perfumada pelo aroma dos jasmins penetrava pelas narinas. O ar era totalmente limpo, os riachos que por ali percolavam, com uma água tão límpida, que se via o fundo nos mínimos detalhes, os peixes que nadavam. Arvores estrondosas, pássaros das mais diferentes espécies. Uma diversidade de animais, predadores e presas conviviam em perfeita harmonia.

rocado
Enviado por rocado em 04/01/2010
Código do texto: T2010232
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