Chá para dois
Pousada na chama do fogão a chaleira cuspia vapor de água fervente. A velha senhora dispunha com muito capricho sobre a bandeja as duas xícaras nas quais estava prestes a preparar a infusão do chá.
– Zé Luis! – gritou Jussara em direção da porta que dava para a sala de estar – Desça meu filho, que estou preparando um chá para nós.
– Já estou indo, mãe – gritou ele, também, em resposta.
No piso superior do antigo sobrado, Zé Luís, que subira sob o pretexto de usar o banheiro, bisbilhotava o quarto de Jussara e, balançando a cabeça em desaprovação, questionava-se sobre a sanidade da própria mãe. Afinal, ela que passou a vida organizando o lar no convívio com marido e três filhos, sempre mantivera aquela casa em perfeito alinho, impondo isso a todos com rigor quase marcial e, agora, deixara o próprio dormitório irreconhecível para seus padrões. Na cama lençóis, cobertas e travesseiros estavam amontoados em cantos distintos sobre o colchão. Portas e gavetas foram deixadas abertas e seu conteúdo fora visivelmente revirado. Em se tratando de Dona Jussara isso seria algo impensável. Enquanto ele descia as escadas, acometeu-lhe uma terrível sensação de mal estar.
– Mãe, a senhora não está legal, né? Que se passa? – indagou ele, enquanto acomodava-se na poltrona em frente à que Jussara já ocupava na sala de estar.
– Não se incomode Zé Luís. Não quero falar de coisas ruins. Você demorou uma eternidade para vir visitar sua mãe e, quando se dispõe a isso, não gostaria de estragar tudo com choramingos de uma velha. Tome seu chá, querido – disse ela carinhosamente entregando uma xícara ao filho.
Calado ele colheu a xícara de chá que a mãe lhe entregara. O sorriso amarelo mal disfarçava, agora, seu mal estar que, então, pareceu agravar-se. Irromperam-se leves náuseas e ligeiros calafrios em Zé Luís.
– Lucinha me ligou agora há pouco – disse ele, rompendo o silêncio enquanto queimava os lábios sorvendo o primeiro gole do chá fervente – A ligação caiu em meio a conversa, mas deu para entender que ela estava muito, mas muito preocupada com a senhora e eu quis ver pessoalmente. Que se passa, hein mãe?
– Bom... para falar a verdade, hoje acordei muito assustada, meu filho – dizia ela com olhar vago e distante e girando sem parar em sua xícara a colherinha com que adoçava seu chá – Abri os olhos e vi seu falecido pai sentado à beira de minha cama. Por um instante imaginei que estivesse sonhando, mas me pus de pé apavorada e ele continuou ali, me fitando. Não era um sonho! Minha pressão subiu na hora e estou trêmula até agora – fez uma leve pausa e, notando o ar incrédulo do filho, tentou mudar de assunto – Mas fico contente que você, enfim, tenha se preocupado com sua velha mãe.
Ele ouvia aquilo ao mesmo tempo em que pensava: “Meu Deus! Ela está caducando de vez! Foi para isso que vim aqui?”. Zé Luís, no início daquela manhã, enquanto estava em seu carro dirigindo-se para uma visita a um de seus principais clientes, recebera uma ligação de sua irmã no celular. Ao atender, notou que esquecera de recarregar o aparelho e, assim, a bateria estava prestes a expirar-se. No entanto, foi o suficiente para ouvir umas poucas frases ditas pela irmã, em tom de angústia: “Zé Luís! Cadê você? É a mamãe...”. Obviamente isso o preocupou, pois a mãe, com quem ele rompera após acalorada discussão meses antes, morava sozinha e recusava-se a mudar-se para a casa da filha mais velha. A despeito do ressentimento, ele pôs o orgulho de lado e resolveu ir conferir o estado da velha viúva, tão logo se liberasse de seu compromisso profissional. E assim fez. No entanto jamais poderia imaginar que ela estivesse a tal ponto transtornada que já vislumbrasse fantasmas passeando pela casa.
– Ora! Que bobagem! Fantasmas não existem! – desdenhou Zé Luís – Deixe a memória de Seu Agenor em paz, seja lá onde ele estiver. A senhora passa tempo demais sozinha nesta casa. Aliás, em seu estado, seria bom que aceitasse o convite de Lucinha e fosse morar com ela e a família.
– Depois que seu pai morreu, realmente, foi duro ficar aqui sozinha. Mas não acho que precise de uma babá – disse ela quase irritada – E não fale assim! O fato de você não crer em nada não quer dizer que não haja um outro plano de existência. Eu não temo a morte, porque sei que irei para algum lugar melhor que este.
– O que acredito ou deixo de crer não muda o fato de que a senhora não está bem, mãe. Deixe de ser teimosa! – retrucou ele no tom mais contido possível, para não dar início a outra das costumeiras discussões que sempre tiveram, até porque seu mal estar estava se agravando cada vez mais.
– Pois fique sabendo que, apesar de velha, não estou gagá, não! Aliás, só para sua informação, estou vendo seu pai sentado bem aí a seu lado, neste instante – devolveu Jussara com ares de quem lançava um argumento irrefutável.
Ao ouvir aquilo, os calafrios em Zé Luis deflagraram arrepios que se espalharam dos pés à cabeça. “Será possível?”, pensou ele olhando assustado para onde Jussara apontara a presença do falecido Agenor.
– E quem parece que não está bem é você, meu filho; está branco como cera. Será que está doente? – disse ela, enquanto colocava a mão sobre a testa de Zé Luís para sentir-lhe a temperatura.
– Ah! Mãe! Deixe disso! – resmungou ele, afastando a cabeça para evitar o toque da mãe e quase derrubando chá quente em ambos – Eu vou ligar para Lucinha e avisar que estou aqui. Ela estava muito preocupada ao telefone – emendou ele enquanto pousava sua xícara novamente na bandeja.
– O telefone sem fio quebrou. Use aquele ali ao lado da tevê. Mas nem pense em dizer a ela que estou mal, porque não estou! E morar com ela, nem pensar! Você sabe bem que seu cunhado não me tolera e aqueles filhos dela são agitados demais... E tome seu chá, antes que esfrie! – comandou Jussara com autoridade maternal.
– Vá me dizendo onde o papai está para eu não tropeçar no pé dele – disse Zé Luís fazendo chiste ao mesmo tempo em que levantava-se para ir até o telefone.
Enquanto teclava os números no aparelho telefônico, de pé ao lado do televisor, ele deu as costas à mãe, temendo que ela notasse o quanto estava verdadeiramente incomodado com aquilo. Afinal, ficara em dúvida se não seriam aquelas náuseas e arrepios que não cessavam sinais de que, de fato, o espírito de seu pai estivesse presente.
– Alô! Lucinha? É o Zé Luis... – disse ele tão logo notou que, do outro lado da linha, alguém atendera.
– Zé! Onde você estava? – disse ela, em meio a um choro incontido – Carol e eu procuramos você faz um tempão. Está sentado? As notícias não são nada boas – advertiu ela, entre soluços.
– Fale logo, mulher! Que houve?
– Hoje cedinho, depois que levei os meninos à escola, passei para visitar mamãe... – interrompeu bruscamente a fala e desatou a chorar até quase perder o fôlego.
– Lucinha! Procure manter a calma e diga logo o que aconteceu – ralhou Zé Luís, já incomodado com a falta de objetividade da irmã.
– Toquei a campainha e, como ela não atendesse a porta, usei minha cópia da chave e entrei. Encontrei mamãe morta em sua cama. Deve ter morrido enquanto dormia. Foi horrível! Horrível! Foi um Deus nos acuda para ajeitarmos tudo, preparar o corpo para ser retirado e você, como sempre, pensando só no seu umbigo, totalmente fora do ar...
A partir desse ponto, Zé Luís já não ouvia mais os gritos e lamentos de sua irmã ao telefone. Lentamente virou-se em procura da mãe e só avistou, sobre a mesa de centro, as duas xícaras de chá, ainda fumegantes.
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