A MÁQUINA

                                                       A MÁQUINA


                              25 de setembro de 2054

                                                                           12:30

     Walnei encerra mais dia de trabalho na Virtual Corp. Dessa vez, decidiu não almoçar no mesmo restaurante em que costumava. Sempre fazia sua refeição ali por que sua esposa começava seu turno na Empresa Indiana de Softwares Aeroespaciais às treze horas, ela até se prontificara a deixar tudo pronto para quando ele chegasse ao módulo habitacional em que viviam nas proximidades da zona industrial, já que ela preparava diariamente almoço pra si, mas ele ainda preferia frequentar bares e restaurantes a comer sozinho um prato que teria que requentar. Gostava de frequentar sempre os mesmos estabelecimentos em qualquer ocasião: "pra variar é preciso escolher, pra escolher é preciso pensar, pra pensar é preciso ser e ser cansa, prefiro estar, que ainda admite explicações superficiais. Por isso, entre tantas possibilidades para um técnico em humanidades recém formado, escolhi me empregar como investigador de comportamento numa empresa coreana". Era o que dizia sempre que indagado sobre sua estranha fidelidade interiorana,  já que era natal de uma metrópole, e mesmo a pequena cidade onde vivia já havia se transformado em um importante centro cosmopolita integrante de uma das megalópoles que já começavam a tomar forma, a primeira do país e a segunda da América Latina. Mas, nesse dia, decidiu mudar a rotina, estava cansado de si mesmo nos mesmos lugares. Nada como a invisibilidade do anonimato pra poder ver sem ser visto. Não escolheu outro restaurante, preferiu entrar em uma padaria à moda antiga, as casas de pães de hoje oferecem de tudo, desde refeição a mídias e drivers, o matinal ou vespertino a que fora acostumado em casa não é mais o principal produto, achava que seu pai nunca frequentaria uma loja dessas e, consequentemente, não teria com quem dividir suas histórias e pensamentos de filósofo de boteco, como se dizia antigamente. Essa padaria, que ficava muito perto de sua habitação, em uma rua muito movimentada e tradicional que servia como ponto de referência, era frequentada pelos tipos desenquadrados da sociedade, aqueles que não entenderam a terceirização dos setores produtivos ou os, mais raros, que não a aceitavam, a padaria sempre lhe acompanhava os passos enquanto passava por ela em direção a seu módulo habitacional. Hoje resolveu ceder a suas investidas. Havia, nela, um grande espaço, à direita, reservada a quem estava só de passagem ao pedir algo no balcão ou escolher produtos das prateleiras ou dos refrigeradores. À esquerda, ficava a copa, para aqueles que gostam de demorar no ambiente, mesmo que tivessem alguém à espera em sua moradia. Geralmente, estes eram mandados por suas esposas, mães ou afins para comprar algo para o café ou almoço, e aproveitavam pra refrescar a cabeça com adeptos do mesmo sistema ou com as moças que os serviam e que aceitavam qualquer tipo de lisonjeio, por mais pobre e baixo que fosse, pois fazia parte de sua função: servir quem por ali aparecesse. A copa era muito mais estreita do que a área do balcão, isso obrigava os clientes se espremerem para alcançar um dos poucos lugares ainda vagos, e a terem um contato mais próximo com os pares de hábito ou com as moças que os serviam, caso não gostassem muito de quem os cercavam, que também não teriam obrigação nenhuma de agradá-los.
     Quando Walnei entrou, não havia lugar para sentar-se à copa. Então, se aproximou o quanto pode, permanecendo em pé, e pediu um refrigerante e um misto com ovo a uma das moças que estava por perto sem perceber que esta ainda estava ocupada com o pedido de outro cliente. Logo uma senhora, que estava sentada em uma das últimas cadeiras no fundo da copa, se levantou e começava a se contrair e se esforçar para sair de lá em direção ao caixa, pedindo licença aos que estavam entre ela e seu objetivo, o que os obrigava a também se contrairem ou, alguns deles, até a se levantarem e tirarem suas cadeiras do caminho. Como atrás dele havia pessoas já ansiosas por uma oportunidade de estarem acomodados com mais conforto, se apressou em demonstrar seu intuito em substituí-la no lugar vago, coisa compreendida pelos que chegaram após ele, o que frustrou seus anseios e diminuiu suas ansiedades. Assim que se sentou, passou a ser observado pelas atendentes ainda ocupadas com os demais clientes, que também o olhavam, porém tentando ainda mais demonstrar desinteresse. As moças também pareciam se entreolhar como que perguntando umas as outras quem seria a primeira a terminar seus afazeres e conhecer o novato. Ele também parecia ansioso e impaciente, pois, como já foi dito, não gostava muito de mudar de ares, apesar de ter escolhido estar ali naquele momento, olhava tudo e todos com tanta atenção que parecia estar captando e registrando informação para um tipo qualquer de relatório, pessoas com este tipo de atitude são perigosas: podem roubar o que foi observado ou vender informações para quem pretender fazê-lo, e ambas são atitudes de traidor. Entretanto este comportamento era apenas uma das características de sua profissão, qualidade acentuada e valorizada no tempo em que cursou humanidades e muito incentivada enquanto investigador de comportamento. Quando finalmente foi atendido, pela mesma moça a quem fizera o pedido assim que entrara, refez o pedido:

     - Um refrigerante e um misto com ovo, por favor!

     A atendente, então, repassou seu pedido àquela que estava preparando os lanches de outros pedidos e lhe deu um refrigerante, perguntando, com delicadeza e simpatia, e com tom e feições que deixavam escapar uma certa curiosidade:

     - Copo ou canudo?
     - Copo, por favor!

     Ela lhe entregou o copo. Ele agradeceu com um meio sorriso que parecia dizer “não te conheço, mas gostei de você”. Ela devolveu o mesmo meio sorriso.
     O lanche ficou pronto e foi servido pela senhora, a única ali que se podia chamar de feia, por estar fora dos padrões estéticos de altura, peso e idade, que o preparou, e que perguntou:

     - Só isso?
     - Só isso, obrigado!

     O homem logo à sua esquerda tentou iniciar um assunto, comentando o que aparecia no noticiário da TV instalada na parede do lado oposto a que estavam, no alto:

     - Daqui algum tempo, a gente vai ter que aceitar esse povo do litoral, que vai ficar sem ter onde morar por causa do aumento do nível do mar, aqui na cidade.
     - Pois é! E ninguém quer saber de parar de circular de automóvel particular. Mesmo tendo que pagar multa por cada dia útil em que o cidadão for flagrado utilizando seu veículo, as ruas vivem cheias de carros de passeio.
     - Mas também! Essa multa é irrisória e qualquer um que entre com recurso acaba sendo isento da multa, e bem rápido. O bacana faz a lei, mas deixa uma brecha pra ele mesmo se livrar dela, o povo descobre e também usa. E continua tudo a mesma coisa.
     - E o efeito estufa, a cada dia, piora as condições de vida na Terra.
     - Apesar, que já é tarde demais pra reverter essa situação. Algo de realmente concreto poderia ter sido feito há uns sessenta ou setenta anos. Há quarenta anos, quando a situação já estava crítica, ainda não se deu importância ao fato...
     - Acho que pensavam que Marte nos salvaria.
     - ...mas gastaram tanto dinheiro combatendo terroristas e epidemias, que Marte não saiu nem da imaginação: não chegou a ir pro papel.
     - Meu nome é Walnei, investigador de comportamento.
     - E que diabos isso faz?
     - Eu analiso perfis em redes de relacionamento e tento estabelecer possíveis tipos comportamentais pra que a empresa para a qual trabalho venda os resultados para empresas de marketing que os utilizam como informação necessária para prognóstico de público alvo.
     - Puxa! Fiquei tonto agora. Quer dizer que você conhece as preferências de todos que estão na rede.
     - Quase todos. Somos cento e cinquenta, fazendo o mesmo trabalho, por turno só aqui no Brasil. E temos cotas semanais pra alcançar, com análise estatística, posterior, de qualidade, isto é, de acerto.
     - Então você não pode entregar o trabalho de qualquer jeito?
     - Não. Mas qual’é tua graça?
     - Milton – lhe estendeu a mão – muito prazer – apertou sua mão.
     - Prazer. Nome de poeta!
     - Mas sou porteiro de edifício. E só anoto recado – deu uma risada contida, como quem acaba de se afeiçoar inesperadamente, abrindo apenas um dos cantos da boca.
     - Então seu trabalho é muito parecido com o meu. Você conhece a rotina de quase todos os condôminos, não?
     - De todos. Somos apenas um por turno em todo o residencial – sorriu novamente, dessa vez mostrando um pouco mais de dentes -, mas sei apenas onde moram, quando entram e quando saem. Ah! Conheço também alguns de seus parentes e amigos.
     - Você, realmente, só sabe isso?
     - Te confesso que tenho certa curiosidade, mas não a alimento. Minha profissão também exige ética.
     - Pois o que eu faço é alimentar essa curiosidade que todos temos, e não podemos confessar. Graças a ela é que você recebe em seu endereço físico ou virtual anúncios de tudo que você gostaria de ter e, de repente, nem sabia. Graças a ela, também, é que aprecem em sua rede de relacionamentos, você tem uma, não?
     - Sim.
     - Então, graças a ela é que você faz amizade com tanta gente com tanto em comum e, às vezes, tão perto sem procurar muito e sem sair de casa.
     - Quer dizer que basta a gente ter um perfil na rede e vocês acham tudo o que nos agrada, sem precisarmos fazer esforço nenhum, nem mesmo o de sair de casa.
     - Mais ou menos isso.
     - Graças essa sua curiosidade, também, perdi minha esposa e minhas filhas.
     - Heim? – disse Walnei, franzindo a testa.
     - Por causa da Máquina. Conhece?
     - Sim. Também tenho uma.
     - Pois bem! Quando minha esposa descobriu essa Máquina, e encomendou uma, não teve mais tempo pra mim e pras minhas filhas. Passava o tempo todo nesse outro mundo até o ponto em que minhas duas filhas preferiram se mudar pra outro estado com seus namorados, quer dizer, uma com seu namorado e a outra com sua namorada.
     - Mas como isso?
     - Eu chegava a meu módulo habitacional do trabalho e lá estava ela se engraçando com seu galã virtual. Então, enquanto ela me preparava o jantar, tentava lhe contar sobre as novidades do condomínio, porém ela não fazia mais do que acenar com a cabeça e resmungar: “hunrum!”. Depois de terminado o jantar, voltava ela pra Máquina e, lá, ficava até tarde da noite. Às vezes com sua falecida mãe, às vezes com amigas que ela mesma havia criado, mas, quase sempre, com aquele galã de cinema indiano que ela tanto adorava.
     - Ah! - Fez cara espanto, como se tivesse sido encontrado por um credor lesado por ele há muito tempo.
     - Quando minha primeira filha foi pro Paraná com seu namorado e ela sequer tomou conhecimento, arranquei ela da Máquina e a fiz em mil pedaços. Minha esposa, então, fez as malas e disse que nunca mais voltaria. Até tentei impedir, me dizendo arrependido, que compraria outra Máquina, mas ela respondeu dizendo que não adiantava, porque a Máquina não era o tal galã... e nem eu, e que a vida dela não era vida. Ela pegou suas coisas, bateu a porta e, realmente, nunca mais voltou. Uma semana depois, minha segunda filha também foi-se embora, segundo ela, por que preferia viver longe de mim, mas feliz com quem ela amava, uma garota, do que ter o mesmo destino de sua mãe.
     - Pois é!... - parecia tentar contornar a situação – mas a Máquina também pode ajudar. Veja o meu caso. Eu tenho um trabalho até razoável, que eu escolhi, mas essa coisa de ter cotas a cumprir o deixa maçante e estressante, isso sem falar nos patrões coreanos, que mal falam nossa língua, e, no entanto, nos pressionam o tempo todo, fazendo, inclusive, cobranças absurdas. Em resumo, é um emprego como todos os outros. Então, o que faço? Chego a meu módulo e programo a Máquina com lutadores de boxe coreanos, mais fracos do que eu logicamente, e os arrebento um por um. E minha esposa? Ela trabalha no turno da tarde como engenheira de uma empresa de projetos aeroespaciais. Quando chega, à noite, do trabalho, encontra o jantar já pronto, toma um banho, se alimenta e vai pra Máquina, mas ela a usa só como um comunicador que projeta todas as suas amigas ao seu redor e ali elas ficam num bate-papo eterno. Eu,enquanto isso, fico no quarto pesquisando algo para o dia seguinte ou então assistindo a alguma videopalestra. Assim que ela vai pro quarto, a gente conversa um pouco e, se pintar um clima, a gente faz amor, por que eu, na verdade, tô sempre com vontade, mas, se ela não estiver disposta, eu não posso forçar, não é mesmo? Então, de madrugada, eu acordo cheio de vontade, vou pra Máquina, programo algumas gostosas com quem cruzei durante o dia ou vi em alguma revista ou televisão, e me acabo com elas. Você, se tivesse uma Máquina, poderia até programar, nela, suas filhas e sua esposa e passar o tempo que quiser com elas. Acho que você deveria experimentar.
     - Pode ser.
     - Bom! Eu preciso ir andando.
     - Até mais então!
     - Até mais amigo... Milton, não é?
     - Isso aí, Walnei.




                              02 de outubro de 2054


                                                                      18:30

     - Querido, estou em casa! – entrou a esposa de Walnei, entusiasmada.
     - Oi, benzinho! A torta de legumes está quase pronta. Alguma novidade?
     - Na empresa, não aconteceu muita coisa, não. Mas fiquei sabendo que um morador aqui do bairro morreu dentro da Máquina. O nome dele era Miguel, Manoel, sei lá... acho que a gente não conhece.
     - E como foi que isso aconteceu?
     - Parece que programou muitas tarefas ao mesmo tempo e a Máquina fechou por doze horas com o tal lá dentro sem deixá-lo sair. O coitado não aguentou e enfartou.
     - E alguém sabe o que ele programou?
     - Dizem que havia programado muitas pessoas ao mesmo tempo: mulheres, homens, parece até que alguns de seus familiares.
     - É! Quem nunca comeu doce, quando come, se lambuza.
     - Tem gente que não sabe se controlar, né?
     - Depois vai ter gente falando que a culpa é dessa Máquina, filha do diabo.
     - Huuuum! Mas esse cheirinho tá bom!
     - Tá quase pronto. Vamos à casa de minha mãe hoje?
     - Mas eu queria conversa com as meninas hoje.
     - Você podia fazer isso na Máquina de minha mãe. Afinal, ela também gosta muito de suas amigas.
     - É mesmo, né?
     - E eu aproveito pra dar mais uma estudada nos escritos de meu pai. Sabe que eu ando me interessando por aquele hábito de bate-papo de antigamente que ele mantinha com seus amigos.
     - E manteve até o fim da vida. Tanto é que tiveram que buscá-lo na casa de um de seus compadres quando ele começou a passar mal e enfartou.
     - Pois é.




cimatti
Enviado por cimatti em 27/12/2009
Reeditado em 28/12/2009
Código do texto: T1998765
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