O Criador do Mundo
A terra é o mesmo lugar
Onde se sonha pra despertar
(O Dia do Criador – Walter Franco)
Aqui o mundo começou. Aqui o criador teve a idéia para a criação do mundo e de tudo o que tem nele. Esse é um chão sagrado. Um, porque há outros. Há locais onde o criador pisou, onde fez atos incompreensíveis para nós, mas muito claros na sua concepção do que deveria ser uma criação. O criador aqui dançava. Devo explicar que o criador do qual estou falando não é o criador do espaço, mas o que deu formas a ele. O criador do espaço é insondável. O criador do mundo é nosso ancestral. Foi ele que definiu que o triangulo era um triângulo e que deveria se chamar triângulo.
O criador do mundo caminhava por aqui e aqui percebeu que as coisas se repetiam ou que elas só existiam em determinados lugares. Aqui ele percebeu que os bichos não são os mesmos em todos os lugares e que mesmo que tenham características parecidas, são diferentes. A carne deles é diferente. Eles correm diferentes. Atacam de formas diferentes. As plantas, ele percebeu, também eram diferentes. Se, antes de passar por aqui, todos os sabores eram indistintos, aqui a fruta amarela passou a ter um gosto diferente da fruta vermelha. Aqui a fruta azul passou a ser proibida e maléfica.
Sempre que caminho por aqui, sinto o poder das pegadas de nosso deus. Sinto como se ainda hoje ele pudesse caminhar comigo, sentar-se a luz da fogueira e me contar histórias do criador do espaço. Mas, não se deve confiar tanto nessa sensação, pois é apenas uma sensação e o criador já faleceu há muitos sóis e há muitas luas. Há tanto tempo quanto o número de estrelas que há no céu à noite.
Sou sacerdote do povo que vive nessa terra. Herdei essa sensação do sacerdote anterior a mim, que herdou essa sensação do sacerdote anterior a ele e assim é há muito tempo. Você sentiu que somos diferentes do povo que vive na direção do sol que nasce. Não temos aqueles instrumentos que eles usam para marcar as coisas que eles acham importantes. Nós dependemos da nossa memória e do que somos capazes de guardar nela. E assim deve continuar sendo. Nenhuma das histórias do criador do espaço deve ser colocada naquele instrumento. Se quiser aprender com eles, aprenda, mas saiba que não deve colocar, nele, tudo o que vier a sua mente. Há segredos que devem permanecer segredos; há coisas importantes que só são importantes para um pequeno grupo de pessoas; e há coisas que todos devem conhecer.
Eu já estou ficando velho, daqui a mais alguns sóis passarei o poder a você e me recolherei ao meu local de morte, como todos, antes de mim, fizeram. Até lá, ainda contarei mais histórias para você e exigirei mais de você até sentir que está pronto. Quero que guarde a noção mais importante: a terra é mãe. Como uma mãe que amamenta uma criança, ela nos alimenta. Tudo está à nossa disposição. Não deixe retirar mais do que se deve, mas também não deixe tirar menos do que é preciso. O criador disse que devemos nos permitir tudo o que quisermos, mas sabendo que há medida justa.
Não se intrometa na vida dos outros. Não é direito seu mudar a direção que eles escolherem para si. Porém, se a opção escolhida interferir na vida do povo em geral, não tenha medo de cessar essa intervenção. Já fiz isso várias vezes. E mesmo quando a interferência parecia ser algo bom para todos, eu a impedi. A jornada de cada um é solitária. O que um decide para si, não pode ser tomado como exemplo pelos outros. Assim o aprendizado não ocorre. Você entenderá quando ler as estrelas. Entenderá que o mundo de fora é igual ao mundo de dentro. Por que o mundo de dentro se formou quando o mundo de fora também se formava. Nasceram juntos e juntos acabarão. O que você vê, resultado do trabalho de mãos e pernas, construção continuada e nunca terminada, é resultado do todo, mas o todo só existe por que as partes são diferentes.
Cada um de nós é uma parte, um pedaço de argila colocado na parede do abrigo, que não é mais importante que os outros pedaços. É parte, apenas. O que você vê do nosso povo se estrutura pela diferença, por tanto, nunca deixe as coisas ficarem iguais. Igualdade não existe. O nosso fim, e por conseqüência o fim do mundo, se dará quando toda a diferença não puder ser mais percebida. Quando um bicho não se sentir, mais, diferente de uma planta. Quando um de nós sentir que não é diferente do irmão que está ao lado.