Triste fim da inocência
As cortinas balançavam encharcadas contra a parede. Nunca nos lembravamos de fechar a janela. Nunca. Era muito bom não ter que atender telefones, ver fotos, sorrir. Devemos ter ficado por ali por mais de duas horas simplesmente sentados naquele sofá vagabundo sem trocar uma unica palavra. A música não existiria sem o silêncio.
- Me dá esse copo aqui – disse ela em monotom.
Estendi o braço demoradamente sem virar o rosto. Com certeza deveria estar atônito e absorvido num fluxo de pensamento sem foco nem utilidade, mas de certa forma prazeroso demais para me movimentar.
- O que vamos fazer hoje? – cobrou ela finalmente voltando o rosto para mim.
- Nada.
Seus olhos eram comuns e sem graça. Pequenos ovos de codorna que me lembravam que jamais chegaria perto de entender o que aconteceu e o que estava acontecendo. Quando se mexiam de um lado para o outro traduziam a impotência de qualquer porcaria que ainda estava por vir. Depois de um longo gole de vinho barato, uma longa gargalhada, um longo abraço apertado, uma cuspida na cara. Mãos sensiveis, capazes de dar espasmos de caganeira. “Voce lê pensamentos”. Comecou a rir como uma hiena depois de achar um montao de merda. Riu tanto que engasgou com a saliva e começou a soluçar compulsivamente.
Me voltei para a claridade estupida e cinza da janela. Numa das janelas do prédio ao lado havia um velho gordo de cueca cortando as unhas do pé apoiado na mesinha de centro da sala. Mais abaixo, uma pequena janela mostrava só metade de um rabo de pijamas proximo a uma cama que recebia camadas de lençois. Os honestos têm muita coisa na cabeça e quase nada para querer fazer.
- Vou embora daqui – disse eu me levantando de repente.
- Como assim? – susurrou ela com os pequenos ovos arregalados e retirando uma das mãos da boca.
- Pronto, chega desse soluço – completei voltando a sentar preguiçosamente.
Depois de perder a inocência, as cores ficam mais desbotadas, o tempo mais curto e o ar mais insípido. Jamais voltamos a nos interessar por nos mesmos. Ao mesmo tempo, nos tornamos mais seguros, sarcásticos e passamos a crer que realmente sabemos alguma coisa. Qualquer idéia de felicidade, ou da paradoxal hiperbólica `vontade de viver`, esta fundamentada no perpétuo desconhecimento deste contraste.