Fim
Olá.
Você deve estar se perguntado por que eu estou aqui, não é?
Quer dizer, eu compreendo... É bem raro ver alguém parado no alto de um prédio, admirando a paisagem, vinte e três andares acima do chão. Estando assim, de pé, bem próximo ao parapeito, até lhe passo a ideia surreal de um suicida em potencial, não? Percebo que sim. Sua expressão embasbacada confirma o que acabei de pensar.
Bom, você não está de todo errado... Eu realmente sou um suicida em potencial. A ideia de me lançar daqui em direção ao pavimento lá embaixo me soa tentadora. É verdade... Mas isso já não irá acontecer.
Por quê? Bem, o meu pico já passou. Vou tentar lhe explicar: Imagine a cadeia de eventos que culmina em tirar a própria vida como uma montanha russa: o ponto mais alto será aquele de onde o indivíduo salta para a morte. Se você passa por ele, continua deprimido e sentindo-se tentado a findar seu sofrimento, mas já não será capaz de cometer o dito ato. O suicídio é uma montanha russa onde só se dá uma volta. Se eu evitei a morte no ponto mais alto, o resto será recuperação.
E eu já passei deste ponto. Para ser bem sincero, já estou quase acabando o percurso. Daqui para frente, as coisas só tendem a melhorar...
Mas ainda assim, cá estou eu, admirando este mirante, não é mesmo? Uma recaída, você imagina. Porém, não é este o caso. Na realidade, este lugar aqui tem um significado especial para mim. Confesso, foi daqui que eu pretendi pular, quando cogitei a morte. Queria que minha morte ocorresse no exato local onde o motivo pelo qual eu gostaria de morrer nasceu. Mas não é por ser o meu desejoso leito de morte que este ambiente é especial. Parafraseando a razão de minha morte, "aqui é o único lugar onde a cidade reflete, simultaneamente, a frieza do concreto e calor do pôr-do-sol".
Só o que me restou desta história toda foi esta frase.
Bom, vendo esta sua expressão de perplexidade, imagino que você queira saber o que me aconteceu, não?
Se você estiver disposto a escutar, eu estarei disposto a lhe contar. Suponho que está "fábula", se repetida aqui, no lugar onde nasceu, parecerá muito mais bela do que, talvez, tenha realmente sido.
Mas bem, você já deve imaginar qual a causa do meu pesar...
Sim, a razão era uma garota. A garota dos meus sonhos, devo dizer. Não irei descrevê-la para você, por um motivo simples: não quero limitá-la. Se eu lhe disser detalhadamente como ela era, você terá uma figura pronta para imaginar. Porém, se eu deixar esta ideia vaga, você poderá criar a personagem que melhor se encaixar na sua ideia de "Princesa Encantada". Não direi nomes, não direi gostos, não direi medidas. Fica tudo por sua conta, imagine-a o mais perfeita que conseguir. E assim terá uma amostra do que eu sentia por ela.
Pois bem, eu conheci esta garota aqui. Lembro que era um dia em que ventava tremendamente. Meu chefe, que coordena um escritório três andares abaixo daqui, ralhou comigo sobre alguma coisa que ele havia esquecido aqui em cima. Não era minha culpa, mas ele reinava continuamente, ordenando-me que viesse aqui buscar o tal objeto. Perceba que já nem lembro o que era, visto a perda de importância que o mesmo teve quando aqui cheguei. Precisei apenas de alguns segundos para notar que havia alguém recostada a este parapeito. Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ou mesmo pensar em dizer, tive a visão mais assombrosa de minha vida: A pessoa em questão ergueu o corpo e passou uma das pernas por sobre o parapeito. Apavorado, tentei gritar, mas foi inútil. O vento rugia em meus ouvidos e, obviamente, nos dela também. Mesmo que a torcida do Flamengo estourasse em um coro uníssono, duvido que a dita teria percebido.
Quando vi a garota guindar a outra perna para passar pela grade, não consegui me conter. Numa atitude um tanto irracional, me lancei em uma correria desenfreada até aqui, agarrando o braço da moça o mais rápido que pude. Quando ela sentiu-se presa, tentou relutar, o que a fez perder o equilíbrio. Seus pés perderam o contato com o concreto e, ela só não caiu pois estava sendo segura por mim. Consegui puxá-la de volta, com um tremendo esforço. Assim que a vi em segurança, caí de joelhos, arfando desesperadamente. Apesar de cansado, sentia uma euforia tremenda. Mesmo que contra a vontade da própria, eu acabara de salvar uma vida.
Foi quando percebi o olhar da moça. Ela chorava estridentemente. Algo terrível de se ver. Não consegui ouvir muito bem o que ela gritava, mas suponho que tenha sido melhor não ter escutado. Pela expressão de ódio que ela apresentava, não creio que ela estivesse me agradecendo.
A moça ergueu-se e saiu em disparada porta afora, sem sequer olhar para trás.
Tudo bem, pensei. Ela é só uma doida suicída.
Interessante, não é? Saber que eu salvei a vida de alguém. É, eu sei...
Pensei muito sobre isso nos dias seguintes. No princípio eu me sentia muitíssimo bem. Um herói. Porém, com o tempo, fui começando a refletir sobre o que eu havia feito. Para alguém cogitar o suicídio, suponho que sua vida estivesse uma porcaria muito grande. Será que eu havia feito a coisa certa ao impedir que a moça beijasse o pavimento? Creio que sim. Tirar a própria vida é uma atitude covarde. O simples fato de a garota ter pensado nisso já prova que a mesma é fraca.
Ou não? Se você pensar bem, terminar a vida é um ato que exige grande coragem. Afinal, é uma atitude que não tem volta. Não é como terminar um namoro, onde sempre é possível, ao menos, implorar para voltar atrás. Uma vez terminada, é fim de jogo. Acabou. Já era. Findo.
Para ela ter conseguido tomar tal decisão, ela deveria ser tremendamente corajosa. E isto, automaticamente, me tornava um tremendo idiota. Quanto tempo de planejamento e coragem acumulada eu joguei por água abaixo? Quanto do esforço da garota eu arruinei? O que eu julgava um ato de heroísmo, na verdade foi uma grande intromissão. Decidi por me desculpar com a garota. Era o mínimo que eu poderia fazer. Bem, eu poderia terminar o que ela começara, mas a ideia de ser preso por assassinato não me soava muito agradável. Decidi por simplesmente pedir desculpas verbais. Era o que estava ao meu alcance. Paciência...
Mas como me desculpar? Eu nunca mais a encontraria. Não tinha um nome, uma referência ou coisa do gênero. Sequer havia visto seu rosto. Não havia como revê-la. A não ser que eu voltasse e esperasse por ela no lugar onde nos encontramos. E foi o que eu decidi fazer. Passei a visitar o terraço do prédio todos os dias.
Não tinha lá muitas esperanças de reencontrá-la, mas suponho que quando as coisas devam acontecer, elas acontecem.
Um dia, após o trabalho, fiquei um bom tempo no terraço, escorado ao parapeito, esperando. Já estava de saída quando percebi a maravilhosa vista que o prédio oferecia do pôr-do-sol, acabei decidindo ficar. Nunca imaginaria que aqui, em plena cidade grande, haveria um local com uma vista tão... magnífica. Fiquei ali observando, um bom tempo. Foi quando ouvi uma voz arrastada as minhas costas:
"- Hoje você não pretende ir embora?" - Me virei assustado. Era ela, sem dúvidas. Meu coração disparou, um pouco pelo susto, mas em grande parte pela visão que tive. Aquela garota... assustadoramente bonita. A luz alaranjada que emanava do poente iluminava-a de forma incrível. Aquela garota foi, na minha opinião, a visão mais próxima a de um anjo que eu já tive. Lembro-me que não consegui responder de imediato, tão chocado estava. Assim que consegui recobrar a voz, perguntei o que ela queria dizer com aquela frase: "- Oras... normalmente você vai embora mais cedo. Hoje é a primeira vez que tenho de esperar tanto tempo até conseguir meu lugarzinho especial só para mim". - Eu sorri, ligeiramente constrangido. Apesar do tom e voz, era visível que ela estava apenas brincando comigo. Perguntei se ela vinha todos os dias até o prédio, e ela disse que sim. A garota caminhou até o meu lado e apoiou-se no parapeito também. "Eu adoro esse lugar", ela murmurou. Levei algum tempo para me lembrar que o que eu viera fazer ali era lhe pedir desculpas. Decidi por fazê-lo logo. Ainda recordo claramente o diálogo que se seguiu. O primeiro a falar alguma coisa fui eu:
"- Ahn, moça... Eu acho que lhe devo um pedido de desculpas.
- Capaz... Você salvou a minha vida. Quem lhe deve desculpas sou eu.
- Bom, é que eu estive pensando... Eu devo ter estragado o seu planejamento, certo?
- Planejamento? - Ela sorriu, o que me fez corar. De fato, nunca vira uma garota tão bela. - Não há muito de planejamento em tentar se matar, não é?
- É, isso é verdade... Exige menos planejamento do que pegar as roupas na lavanderia, suponho... - Murmurei e tornei a recostar-me a grade de proteção. Admiravamos o espetáculo colorido com o qual o Sol despedia-se. Após alguns momentos, ela voltou a falar:
-E cá entre nós, foi melhor você ter me impedido. Eu não gostaria de macular este lugar maravilhoso com a minha morte..."
Eu poderia continuar lhe contando minuciosamente como foram nossos encontros, mas não acho que você tenha tanto tempo disponível. Posso lhe dizer que ela alcançava cada espectativa minha. Era simplesmente perfeita. Posso lhe dizer com plena certeza que eu me apaixonava mais por ela a cada dia que passava.
Nós marcamos de nos encontrar depois daquele dia. Fomos ao cinema, assistir um filme de terror. Eu detesto filmes de terror, mas achei que iria impressioná-la e tal. Ainda dou risadas ao lembrar que, após o filme, eu disse para ela que, para ser sincero, detestava filmes daquele gênero. Ela sorriu e me disse que também sentia-se assim, e que só concordara em assistir àquele filme para causar uma boa impressão.
Nós nos encontramos varias vezes depois daquela, e nossa paixão cada vez aumentava mais. Porém, nós nunca fizemos nada além disso. Nunca trocamos um beijo sequer. Não sei lhe dizer exatamente o porquê desta vagareza. Só sei que as coisas arrastavam-se de forma irritante. Então, um dia, ela desapareceu.
Fiquei preocupado, pois ela sempre me dizia onde estava. Era estranho vê-la parar de manter contato constante. Passou-se uma semana até que ela voltasse a falar comigo. E ela disse que precisava se encontrar comigo, para me falar sobre algo importante.
Depois daquela semana de sofrimento e solidão, percebi o quanto ela era importante para mim. Decidi que não esperaria mais: iria contar-lhe o que sentia. Sabia que era recíproco. E mais do que isso: eu precisava dela. Queria poder dizer-lhe todos os dias o que sentia. Apesar de eu adorar aquela sensação de aflição ao vê-la sair do meu lado, eu queria levar nossa relação um nível acima.
Foi uma decisão infeliz, devo lhe dizer. Eu havia escolhido o momento errado. Estava atrasado. Talvez, se eu tivesse pensado em lhe dizer o que sentia mais cedo, as coisas tivessem sido diferentes.
Mas enfim... Acho que você quer saber o que aconteceu, não é? Vou direto ao ponto, então.
Ela marcou o encontro aqui, neste lugar. Após o expediente, cá estava eu, esperando. Suava frio, tamanho era o meu nervosismo. Nunca imaginei que fosse tão difícil dizer míseras três palavras. Juntas, elas sequer somavam dez letras. E ainda assim, eu não conseguia pronunciá-las nem para o vento. Imagine então dizê-las para a única pessoa no mundo para quem tais palavras seriam verdadeiras...
Quando ela chegou, sequer olhou-me nos olhos. Foi diretamente ao parapeito, apoiando-se para observar o pôr-do-sol. Nosso diálogo foi mais ou menos o seguinte:
"- Mas então, o que de tão importante você têm pra me dizer? - Minha voz vacilava um pouco, visto o meu nervosismo. Eu imaginei que ela fosse se declarar para mim. Pensava que, se o sentimento já não poderia ser contido por mim, por ela também não poderia. Mas ela hesitou antes de responder.
- Você sabe o que há de especial neste lugar? Aqui é o único lugar onde a cidade reflete, simultaneamente, a frieza do concreto e calor do pôr-do-sol...
- É verdade... Mas enfim, o que você queria me dizer? - Ela respondeu sem me encarar. Eu estava achando aquilo tudo muito estranho. Ela nunca fora tão esquiva assim.
- A vida é injusta, não? Ela nos sorri apenas para nos dar uma rasteira enquanto estamos distraídos... - Aquele tom derrotista dela me preocupava tremendamente. Comecei a ficar muito mais nervoso do que já estava.
- O que você está querendo dizer? Aconteceu alguma coisa? - Ela me encarou, afinal. Ainda me dói o coração, só de lembrar de seu rosto, manchado de lágrimas, e das palavras que ela me disse:
- É melhor nós não nos vermos mais... Terminar esta história antes que as coisas piorem. Eu lhe peço que não me procure mais, por favor... Desculpe por tudo... - Nem preciso lhe dizer que foi chocante, não é? A garota dos teus sonhos, sem aviso prévio, te manda pastar. Eu ainda estava com o aquelas três palavrinhas na ponta língua.E o meu desespero foi o gatilho para disparar tais palavras.
- Mas... eu te amo. Eu preciso de ti. Tu não pode ir embora... - Patético. Ela sequer se virou para responder... Apenas murmurou algo como 'não piore ainda mais as coisas' e se foi."
Só voltei a vê-la meses mais tarde. Semana passada, pra ser mais exato. Mas eu não posso pular esta parte da história. No dia em que ela me disse aquilo, eu embarquei nesta montanha russa. Voltei pra casa me sentindo um lixo. Ficava pensando sobre o que eu havia feito de errado. Em que momento eu havia estragado tudo? Naquele instante eu havia perdido completamente a vontade de viver. Não havia mais sentido em continuar trabalhando, comendo, bebendo, respirando. Eu havia perdido a melhor coisa que já me acontecera. Nada mais parecia fazer sentido. Você consegue imaginar qual seria a sensação de ter uma verdade universal negada a você? Eu a imaginava como a minha alma gêmea. Se não fosse com ela, não seria com nenhuma outra garota. E ainda assim, eu estava errado. As coisas simplesmente deixaram de fazer sentido. Te confesso, naquela época eu andava pelo mundo tremendamente irritado. Suponho que seja a reação natural. Eu me sentia injustiçado. Chego a dizer que estava com raiva dela. Ela não tinha o direito de me fazer amá-la daquela maneira e depois, simplesmente, ir embora.
Foram tempos difíceis de minha vida. Perdi completamente a coerência.
Eu não sentia mais a menor vontade de viver. Estava disposto a acabar com tudo a qualquer momento. Pensei em me jogar na frente de algum caminhão que viesse em alta velocidade. Vivia irritadiço, comprando brigas com qualquer um que me olhasse de uma maneira ligeiramente diferente. E também, eu já começara a criar um desejo mórbido por descobrir como seria o ato de cometer suicídio. Vivia imaginando sobre como deveria ser a sensação. Até praticava algumas vezes. Passava facas pelos pulsos, sentindo o fio cortante separar as camadas externas de minha pele. E neste ponto, minha mente insana me levou a uma última conclusão: Eu deveria fazer algo terrível para conseguir a atenção daquela garota. Eu queria mostrar que ela fizera besteira em me abandonar. Nesta época eu pensei seriamente, pela primeira vez, em me suicidar. Cheguei ao extremo de planejar como seria. Iria ser atropelado em frente a casa dela. Soa engraçado dizer isto hoje. Parece uma memória distante de uma outra vida. Mas realmente, foi o que eu pensei. Eu queria que ela percebesse que tinha sido eu, a pessoa a morrer bem ali. Eu sentia, em minha insanidade, que ela entenderia quando visse a notícia nos jornais. Ela saberia que a pessoa estirada sobre o asfalto daquela rua seria eu. Ela entenderia que eu fizera aquilo por amor.
Bem, você ainda lembra daquela metafora da montanha russa sobre a qual eu lhe falei? Pois bem... Você deve achar que neste momento da história, eu atingira o topo da viagem, não é?
Mas, temo que você esteja enganado. A pior parte é a que me aconteceu a seguir. A pior e, também, a melhor. É onde eu realmente percebi o que é estar vivo e o que significa amar.
Lembro-me que nesta época, eu havia parado de atender telefonemas ou de abrir correspondências. Eu já não tinha mais estas necessidades mundanas. Ignorava completamente outros seres humanos. Faltava ao trabalho, deixava de falar com os amigos, sequer visitava minha família. Já havia entregado os pontos.
Até que um dia, quando voltava para casa após ir ao mercado, fui atacado pelo carteiro. Por algum motivo, o rapaz estava tremendamente contrariado. Ele reclamou alguma coisa sobre minha caixa de correspondência estar lotada. Achei engraçada aquela reação. Lhe disse que não ligava, que não iria ler nenhuma daquelas cartas mesmo. Ele murmurou algo sobre falta de educação e sobre consideração. Gargalhei. Fiz chacotas do rapaz. Fui um otário. Ele me entregou um punhado de cartas e foi embora soltando fogo pelas ventas.
No caminho para casa, a curiosidade acabou por me vencer. Decidi por procurar alguma carta importante entre as muitas que o rapaz havia me entregado. Já tinha descartado várias missivas quando entrei em casa. Ainda lembro de balbuciar, para a sala vazia, logo após entrar, que deixaria de morrer se alguma das cartas ali amontoadas tivesse um motivo forte o bastante. Mal sabia eu que estava coberto de razão.
Virei o resto das cartas, olhando somente os remetentes. Até que uma me chamou a atenção. Não conhecia o primeiro nome da mulher que escrevera, porém seu sobrenome era perturbadoramente conhecido. Era o sobrenome da garota que eu amava. Senti meu coração pulsar acelerado. Era uma sensação que já não vivenciava desde muito tempo. A sensação de estar vivo. Abri o envelope rapidamente e comecei a ler o conteúdo da carta.
Aquelas letras tremidas escritas a mão jamais sairão de minha cabeça.
"Boa Tarde, ******
Eu sei que você não me conhece, mas acredite, eu sei muito sobre você. E sei disso por que minha filha sabia. Talvez você não tenha ciência, mas ela me contava todos os dias as experiências que tinha com você.
E é por isso que eu gostaria que você comparecesse ao enterro dela. Sei que talvez não signifique muito, mas ela gostaria de poder lhe dar o último adeus. Lhe peço, por favor, que venha dar a minha garotinha seu adeus.
Obrigado"
Não sei lhe descrever o que senti quando li aquelas palavras. Foi como ter tomado um grande choque. Minhas pernas amoleceram. Caí sentado no tapete da sala de estar, sem conseguir entender. Pensei, por um instante, que talvez eu já tivesse morrido, e aquilo fosse o inferno. Aquela sensação de aperto em meu coração me sufocava. Olhei o endereço e a data. Coincidência ou não, eu acabara por ler a carta na véspera do dito enterro. Meus olhos marejaram. Seria verdade? Ela havia... morrido? Não podia ser verdade. Me senti instantaneamente culpado. Eu havia odiado-a nos últimos tempos. E agora, ela havia partido. Meu último sentimento para ela fora o de aversão? E eu não poderia me desculpar. Desta vez, ela não estaria no seu local favorito. Ela não estaria em lugar algum.
Posso lhe dizer... Aquela noite foi talvez a pior pela qual já passei. Não conseguia dormir. Na verdade, a única coisa que eu estava capacitado a fazer era chorar. E eu o fiz. Tudo era motivo para lágrimas. Cada detalhe que eu vislumbrava me lembrava dela. E me fazia sentir a imensa sensação de vazio, ao saber que jamais veria-a novamente. Desta vez, era realmente o fim. Neste dia, posso lhe dizer, eu atingi o topo da montanha russa. Aquela foi a data em que eu pretendi, de todo o meu ser, com toda a minha força, morrer. Após a noite em claro que passei, eu tomei a minha decisão. Saí de casa e vim diretamente para este prédio. Subi as escadas rapidamente e aqui cheguei. Pulei esta grade rapidamente, sentando-me neste concreto gélido. Não haveria volta. Se ela já se fora, eu iria junto. Se tudo o que eu sempre desejara na vida era estar com ela, a única decisão lógica era seguí-la, até o outro mundo, se preciso.
Ergui-me e fitei o chão distante. Respirei fundo. Refleti sobre como aquilo tinha começado. Não pude deixar de sorrir ao lembrar que, não fosse eu ter estragado o suicídio dela, não estaria hoje aqui, fazendo o mesmo.
Foi aí que eu me lembrei de um detalhezinho que sempre me aguçava a curiosidade: O porquê de ela ter tentado se matar. Eu não queria morrer sem saber.
É estranho isto... Nossa mente se apega a razões ínfimas para tentar se justificar a não fazer uma bobagem. Suponho que esta certeza, a de precisar saber sobre o porquê de ela ter pensado em fazer o que eu estava prestes a fazer, foi a melhor desculpa que o meu subconsciente encontrou para me convencer a não pular. E acredite, funcionou.
Por mais ridículo e clichê que possa parecer, eu realmente hesitei. "Tenho que descobrir isto antes de partir", pensei. Então me decidi por perguntar as pessoas que tinham condições de saber. A família dela. Olhei no relógio. Ainda havia tempo. Saí do meu leito de morte e me dirigi ao local do enterro.
Você não poderá imaginar o quão surreal foi aquela sensação. Entrar em uma capela, repleta de pessoas entristecidas. E no centro de tudo isso, eu vi a imagem que não me sai da cabeça. Deitada, tão serena que poderia dizer-se que apenas dormia, ela estava ali. Caminhei até o caixão, ignorando os olhares perplexos que me eram lançados. Lembro-me que toda a cena parecia ser filmada fora da minha perspectiva. Eu ouvia o ressoar dos meus passos distantes. Não conseguia sentir realmente as dimensões do meu corpo. Perdera a noção de temperatura, de tempo, de espaço. Aqueles dez metros que eu caminhei pareciam com o trajeto de uma maratona. Levei inúmeras eternidades até chegar ao lado da garota. Seu rosto pálido refletia o que eu sentia por ela. O quão puro era o meu amor. E talvez fosse o dela.
Foi quando uma senhora levantou-se e foi até o meu lado.
Logo percebi tratar-se da mãe da garota. E ela também me reconheceu. Sem falar nada, ela me abraçou. Engraçado como aquilo me reconfortou. Imaginar que alguém, talvez, sentisse o mesmo nível de dor que eu sentia no momento. Me senti como um companheiro daquela senhora que chorava mansamente.
E ela me disse:
"- Obrigado por vir... Ela, com certeza, está muito feliz em te ver aqui... - A mulher tinha uma voz suave e arrastada como a da filha. Senti algo estranho. Como se visse nela a garota que eu amava. Suponho que ela me passava esta imagem por ser a única ligação que me restara com a garota.
- Eu... o que aconteceu? - Perguntei, vacilante.
- Ela tinha uma doença grave. Há muito tempo nós já sabiamos que ela dificilmente iria se curar.
- Ela nunca me contou... - Fiquei petrificado. Ela sempre soubera que poderia morrer a qualquer momento? Como ela era capaz de viver com esta sombra sobre sua cabeça? Senti uma enorme tristeza. Como eu nunca percebera isto? Como eu ousara dizer que a amava, sendo que jamais percebi algo tão importante sobre ela?
- Não se preocupe, ela não falava pra ninguém. Ela sempre disse que não queria ser tratada como uma pessoa em fase terminal. Mas... - Percebi que a senhora sorria para mim. - Desde sempre ela tinha vontade de morrer. Ela pensava que, se poderia ser a qualquer momento, por que não antecipar logo aquilo? Por que não acabar com o sofrimento e a angústia. Sabe... Ela levou um bocado de tempo, mas um dia, contra todos os meus desejos, ela decidiu por se suicidar. Ela me disse antes de sair, que não voltaria. Fiquei tremendamente aflita, chorei de medo. Mas sabe... ela voltou. Levei muito tempo para descobrir que a 'culpa' havia sido tua. Você terá eternamente a minha gratidão. - Não consegui responder. Fiquei dividido entre a felicidade e a tristeza. - Talvez ela nunca tenha lhe dito isto, por que ela não levava muito jeito para essas coisas... Mas você foi a única razão que ela encontrou para continuar vivendo..."
Bem, eu poderia continuar lhe dizendo o que ela me falou, mas não há necessidade. Você já conseguiu entender o que eu nunca imaginei até aquele dia: a garota me amava.
Sabe, posso te dizer com plena certeza que aquele dia mudou completamente a minha vida. Depois que eu saí do enterro, eu voltei para cá. Mais uma vez, coincidência ou não, quando eu cheguei aqui, o sol estava se pondo.
E eu pensando. O quanto eu havia sido imaturo, ao acreditar que ela fizera algo de ruim para mim. Depois de entender o que ela sentia, eu me senti envergonhado. Ela tentou evitar que eu sofresse a sua perda. Mas ela foi ingênua. E eu, muito devagar. Eu queria estar ao lado dela no final. Queria poder ter segurado a mão dela. E mais do que tudo, eu gostaria de ter podido dizer-lhe o que eu realmente sentia. E queria ter ouvido ela dizer o mesmo.
Depois daquela conversa com a mãe dela, eu entendi o que ela quis me dizer. Como a vida é contrastante. Como é cheia de engodos e enganações. Quando ela convenceu-se de que não havia nada para ela, foi que ela encontrou tal coisa. Quando ela acreditou estar no fim de sua vida, ela estava era começando. E me foi doloroso descobrir que eu fui o freio de emergência que a segurou no topo de sua montanha russa. Nunca me passou pela cabeça a ideia de ser tão importante assim para alguém.
As palavras que ouvi naquela capela fúnebre me fizeram perceber o tamanho da bobagem que seria tirar a minha vida. Se eu realmente amava aquela garota, eu deveria entender que, a minha existência era a única coisa que a fizera querer existir. O maior insulto que eu poderia lhe fazer era acabar com isto. A minha vida, a minha presença era o único legado que havia do sentimento que tivemos. E foi aí que eu percebi, o quão significativo era isso: a minha vida significaria a continuação da vida dela. Enquanto eu estiver respirando, ela existirá. Por que a minha presença era a razão para que ela vivesse. Por pior que fosse, eu fiz este juramento: eu continuaria levando a vida, para demonstrar que eu ainda lembro dela, que ela ainda é a pessoa mais importante para mim.
Ao continuar vivendo, eu a matenho viva. E é assim que tem sido. Eu vivo uma vida, mas sou responsável por duas.
Soa poético, eu sei... Mas a minha solidão existência vazia é na verdade a mais completa de todas. Repleta de significado, simplesmente pelo fato de eu existir. A maior prova de amor que eu posso dar para ela é a minha vontade de viver.
Naquele dia, sentado aqui, eu consegui entender o que muitas pessoas morrem sem perceber. Tudo o que acontece tem um significado, uma razão. Eu decidi que não iria pular daqui, que iria esperar até o momento certo para me encontrar com a garota no outro mundo. Eu prometi continuar vivendo, para levar adiante a vida que ela apoiou em mim. Eu não pude estar ao seu lado enquanto viva, mas posso fazê-lo agora.
E é isto que eu faço todos os dias aqui, assistindo ao pôr-do-sol. Repito o momento em que eu comecei a vida dela. E repito o momento em que, ao terminar a vida dela, iniciou-se a minha...
Desculpe por importuná-lo com tão triste e longa história, mas imagino que você tenha querido ouví-la. Não procure por alguma moral ou significado implícito. A vida não tem como objetivo ensinar. Ela está aí pra ser vivida, não para ser estudada. Entenda que hoje, eu sou uma pessoa feliz. Estou sozinho e sou saudosista, mas ainda assim, eu posso lhe dizer que senti, mesmo que por pouco tempo, o que é o amor. Só espero que você não tenha de pagar o preço que eu paguei para poder sentir também.
Mas não se preocupe... A vida cobra o que acha necessário para lhe mostrar o que você merece.
E não se entristeça com esta história. Pense que ninguém nela acabou infeliz. A garota que amei, ela morreu sabendo que tinha algo de importante na vida. Sabendo que sua existência não passou despercebida. E eu... eu continuo vivendo sabendo que, o simples fato de respirar, já é importante para alguém.
Difícil compreender o amor, mas suponho que isto seja a vida, não? Tristeza e alegria, certeza e perda, início e fim. Ou como diria o meu anjo da guarda, "o contraste entre o frio do concreto e o calor do pôr-do-sol".