O Fosso
Estávamos ocupados em nossos afazeres. Fazíamos aquilo que cada um de nós havia sido treinado para fazer. Não era um dia diferente dos demais, mas algo havia de estranho que nos perturbava desde que começáramos nossas atividades. E a confirmação do estranho veio com o ávido de evacuação do prédio. Das caixas penduradas na parede, ouvíamos uma voz que nos ordenava caminhar para os elevadores. Não entendemos na primeira ordem. Ficamos olhando, buscando entender o que acontecia e, a seguir, entender o que provocava aquela mudança. Já a voz seguia em sua quinta repetição, quando, recolhendo nossas coisas, encaminhamo-nos aos elevadores. Estranhamente, apenas um funcionava. Fomos até ele. Um grupo de crianças já ocupava dezesseis dos vinte e sete lugares disponíveis. Entraram pessoas para completar o grupo de vinte e sete. O elevador desceu. Desceu e subiu mais algumas vezes. E a cada subida, vinte e sete pessoas ocupavam o cubículo se perguntando o que havia. Mas, ocorria algo que as pessoas que desciam não notavam. A cada chegada, o elevador estava transformado. As primeiras transformações ocorreram com a ascensorista. Quando da vez das crianças descerem, ela estava tranqüila, alegre por ajudar as crianças. Nas vezes seguintes, ela demonstrava um semblante cansado, diríamos até desiludido. Mas, não apenas isso, suas roupas do azul claro, que era a cor de seu fardamento, passaram a um tom escuro. E da última vez que ela ainda esteve no controle do elevador, estava preta. A roupa estava completamente escura. Então, ela não subiu mais, o elevador estava agora sob o controle de seus passageiros. Os que desciam não notaram nem a transformação da ascensorista nem seu desaparecimento. Tão agoniado o grupo estava para descer, que não perceberam haver mais uma vaga no elevador. Resolvemos, também, não falar nada, pois nós, os que estávamos para descer já havíamos nos organizado e a harmonia que pressentíamos em nossa organização nos tranqüilizava. Agora, o elevador sofria mudanças. Não havia mais o painel com os botões dos andares. Fora substituído por um com dois comandos: subir-descer. Pensamos que isso facilitava o trabalho e percebemos (pensamos, mesmo que a pessoa que organizava tudo lá embaixo era inteligente) que os outros elevadores atendiam aos outros andares: pensamento e execução de uma idéia engenhosa. Isso tranqüilizava aos que estavam próximos de descer, mas não a nós os últimos. Víamos nisso mais uma estranha materialização de intuições sombrias. Depois dos painéis, as cores do elevador se tornaram mais orgânicas, mais escuras. E de repente, sem que esperássemos, mas também, sem que reclamássemos, comida veio no elevador. Não estranhamos o fato de vir comida pelo elevador, mas de dela estar grudada a ele e de termos que colher as caixas e embalagens como se da cor orgânica das paredes do elevador, a comida tivesse brotado. Mais vinte e sete pessoas desceram. Mais uma subida do elevador, que agora tinha uma espécie de arquibancada, em que a parte mais funda era a do fundo. Mais vinte e sete pessoas, mais uma descida, mais uma subida. Corrimões foram instalados. Mais vinte e sete pessoas, mais uma descida, mais uma subida. Um soldado veio e começou a controlar a entrada de pessoas. Uma catraca havia sido instalada. Mais vinte e sete desceram e os próximos seríamos nós. O elevador voltou com corrimões, catraca e soldado. Estacamos e não andamos. O soldado olhou impaciente, mas não falou nada. Um sorriso desconfortável se formou em seu rosto e havia, ali, um convite. Não sabemos o que aquele sorriso-convite nos oferecia. Na hora, apenas demos um passo atrás, recusando tão deslocada gentileza. O elevador e o soldado ainda voltam e ainda nos oferece suas caixas e embalagens e o mesmo sorriso-convite. Aceitamos e declinamos os primeiros e o segundo, respectivamente. Sempre educadamente.