Carne Protegida

“Alienação é fragmentação.”

Regina Lúcia Pontieri – A Voragem do Olhar

Há uma mulher deitada na cama à minha frente. Fizemos sexo durante a noite. Por ela, senti apenas o prazer físico, que me proporcionou. Ela não é a mais adequada. No corpo da que eu queria havia mais sujeira do que tem nesta, mas tive de procurá-la, pois a outra com ataque súbito de consciência virou evangélica e não aceita mais que eu faça o que gosto de fazer. Ela diz que só recebe clientes evangélicos. São limpos e cheiram bem e eu quero cheirar bem, foi isso o que ela me disse. Na verdade, nem me importava com cheiro dela. Ele era apenas um complemento da sujeira que eu via no corpo.

Essa que está deitada na cama, não tem o corpo tão sujo quanto o da outra, mas de certa forma me agrada. Já tirei várias fotos. Consegui algumas imagens realmente belas. A parte interna das coxas dela fez uma diferença grande nas fotos. Pareciam mapas que indicavam algum tipo de oásis num grande deserto. As fotos a incomodaram um pouco. Se eu tivesse ficado na foda tradicional e tivesse apenas lambido as partes sujas do corpo, como normalmente acontece, ela estaria melhor. Mas, inventaram os soníferos e entorpecentes e eu pude realizar meus desejos de forma menos constrangedora pra ela.

Sexo pra mim é muito chato. Mas, para chegar até o ponto que eu queria tive transar com ela. Transamos, ela ficou cansada, pediu água. Na água foi algo mais que o próprio líquido. Dez minutos depois, ela descansava feito um anjo. Um anjo mendigo, claro, mas um anjo. Penso que faço um bem a ela. Quando tirei as fotos, fiz com que ela ficasse eternizada. Todos irão apreciar a sua beleza. A beleza que apenas eu consegui ver. Afinal, quem imagina que uma ferida bem no meio da bunda possa se tornar uma fotografia abstrata do mais alto nível artístico-estético? Aliás, quem consegue olhar para uma ferida e sentir que aquilo é algo bonito?

Sou um esteta. Faço com os outros percebam a beleza sem preconceitos. O rapaz que esteve aqui ontem é um exemplo. Quem conseguiria se excitar vendo uma criatura tão pequena quanto aquela? A sujeira do pênis dele, para os parâmetros sociais bem-comportados, seria algo insuportável. As espinhas, que ele tinha ao longo do pau, eram verdadeiras crateras. Mas, estava ali. A beleza estava, justamente, ali. Cada bola de pus que saltava da pele era uma flor de uma cor sem necessidade de definição, que faria qualquer um chorar. Claro, se qualquer um tivesse a minha sensibilidade. Acho que por isso fotografo, por que eu preciso mostrar aos outros essa beleza. Infelizmente, tenho que diluí-la. Todos os que não são como eu não têm capacidade para apreciar a beleza no estado bruto. Precisam que o diamante esteja lapidado e incrustado no anel para perceber o seu valor.

Posso colocar a culpa de tudo no meu pai, mas não seria justo. Talvez, a palavra não seja culpa, mas a responsabilidade é dele. Quando eu era criança parecia, ou era mais fácil fazer parecer, que eu não gostava de tomar banho. Quem sempre me deu banho foi minha mãe. Como ela me machucava! Cada vez que ela passava a esponja nas minhas costas, eu sentia como se o meu couro fosse ser arrancado, tamanha era a violência. Depois de sentir tanta dor, pensei que banho fosse a coisa mais horrível que existia na face da Terra. Mas, não era medo de tomar banho. Era medo do banho que minha mãe me dava. Mas, infelizmente, como toda criança, era refém de meus pais e o que eles quisessem, eu faria. Tinha que tomar banho.

Cresci mais um pouco, virei adolescente e o cuidado que eu deveria ter aprendido a ter quando minha me dava banho, resolvi esquecer. Decidi que ninguém veria meu corpo. Deixava que a água me desse todo o carinho que ela tivesse a me oferecer enquanto passava pelo meu corpo em direção ao chão. Os banhos se tornaram um momento de alegria. Mas, qualquer esponja ou sabão era proibido encostar no meu corpo. E como qualquer corpo em que sabão ou esponja não encosta, a sujeira foi se acumulando em mim. E o ponto mais visível desse acúmulo era o pescoço. E é aqui que meu pai se torna responsável pela minha arte.

Meu pai tinha sonho de ser militar. Até foi, mas foi expulso da corporação sem motivo nenhum. Quando ele falava, dizia apenas que um sargento chegou um dia para todos do pelotão dele, mandou que ajoelhassem e repetissem as palavras que ele iria dizer. As palavras, não lembro, mas o sentido era que eles, os soldados, agradecessem a Deus por não poderem vestir a farda. Agora estou confundindo o sentido, mas o sargento chamou a todos de idiotas e incapazes. Meu pai disse que ele foi repreendido pelo que fez. Dizia isso com um gosto de vingança nos lábios que sempre me fazia lembrar a ferroada de uma formiga num elefante. Imagine, o sargento tem um chefe, que muito provavelmente tem um chefe. Então, o chefe do chefe do sargento deu a ordem de expulsão. Era pra sair. Não interessava como. Esse arrodeio todo é pra dizer que meu pai se sentia vingado ao falar da punição do sargento, mas eu acho que a punição não foi tão rígida assim. Se tivesse sido meu pai teria ficado satisfeito e não falaria nesse assunto tão constantemente.

Mas, voltando ao meu pai, foi justamente quando num almoço de domingo, eu sem camisa, pescoço a mostra, ele agiu como um vampiro e foi direto a minha jugular: falta apenas um pingente pra pendurar nesse cordão. Eu quase chorei. Nunca odiei tanto uma pessoa na minha vida. Depois disso meu pai perdeu o poder de me fazer acreditar em qualquer coisa. O que ele falasse para mim tinha um poder reduzido de afetação. A TV passou a ser meu pai e meu valor de verdade.

Engraçado, pai de quem eu tinha atenção quando queria. Era muito interessante ver como a TV implorava para que eu desse atenção a ela. Quer dizer, a ela especificamente, não, mas ao que ela me mostrava. Tão ver apresentadores dizendo que eu me sentiria interessadíssimo em ver a entrevista que viria a seguir, que a roupa de fulano de tal não ia sair da minha cabeça, que eu tinha problemas com a minha família.

Como eu disse, a culpa não é especificamente do meu pai, mas é dele, também! E por favor, não pense que a culpa é da televisão. Ela me salvou. Foi ela que me mostrou o mundo. Lembre-se, o pai tem a função de fazer o filho se aproximar do mundo ao aproximá-lo de si. O meu não quis ou não pode ou sei lá, fazer isso. Corri para quem podia. E a TV assim fez. Com erros, com acertos, mas fez. E não aceito que pensem o que escrevo aqui como crítica a ela. O criticado é você que lê.

Nesse almoço, minha tia ainda tentou me defender dizendo que a mancha em meu pescoço era uma mancha apenas, e não sujeira. Quem disse que ele se importou? Essa se tornou a piada favorita dele. Todo almoço de domingo ele me dizia isso. Até que não apenas aos domingos, mas durante a semana, essa piada passou a fazer parte da minha vida. Como já disse, num primeiro momento quis chorar e senti ódio do meu pai. Quis me esconder por detrás da explicação da minha tia, mas eu já era muito grande para caber atrás de algo tão pequeno quanto uma explicação. Eu sabia que era sujeira o que fazia o cordão do meu pescoço.

E como eu, também, disse, a TV me salvou. Um dia, assistindo a um programa médico. Vejo a resposta mais libertadora que poderia dar ou receber. “O corpo não deve ser totalmente limpo”, disse um médico, num programa de entrevistas, “pois a sujeira protege o corpo. A carne que tem uma pequena capa de sujeira está protegida contra várias agressões do ambiente”. Ora, eu tinha treze anos! As minhas questões metafísicas se resumiam em saber se meu pai gostava ou não de mim. E como meu pai (entenda-se televisão) estava me dando aquela resposta: fui ao céu! Ele gostava de mim!

E aqui entra a fotografia: no mesmo programa de entrevistas, um homem, que não lembro, nem vou forçar minha memória para lembrar, mostrou algumas fotografias. Eram perfeitas, mas não eram fotografias artísticas normais. Eram fotos de parte do corpo de pessoas pobres. O que poderia parecer nojento, pela sujeira no corpo dos modelos, era beleza estampada na foto. Minha atenção ficou prendida em uma das fotos. Justamente, a de um menino de treze anos. O foco era seu pescoço. Eu chorei.

Cresci, mas nunca consegui apagar todas essas lembranças da minha memória. Nem quero. Foda-se quem acha que me formo ou me conformo com isso. Não cresci pelas mãos da minha família. Tenho mais intimidade com o apresentador do jornal que com minha mãe, que ainda está viva. O boa noite dele é mais significativo que o beijo que recebo dela. Já não me importo tanto. Já doeu mais. Agora só queima um pouco.

Sim, eu segui um sonho. Formei-me em fotografia, sou um ótimo profissional e odeio tudo o que está ao meu redor. Eu sei, eu sei, a quebra estética da frase anterior foi puro clichê literário. Mas, como eu pensei uma vez, se é pra se vender, que pelo menos se acabe o estoque e que se deixe o chefe feliz. Aliás, eu penso isso ainda e faço a minha p(arte). Vendo a minha (p)arte: vendo corpos sujos para mentes sujas e espíritos imundos.

Não gostaria de terminar falando sobre a corrupção da alma e a pureza do corpo. Soaria hippie demais e falso demais. Eu vendo verdades, quem tem dinheiro pra compra, compra. Que não tem, serve de modelo pra arte. Sobre meu corpo... Está limpo. A sujeira que havia nele foi retirada pelo dinheiro ganho com a sujeira de outros corpos. Clinicas estéticas fazem milagres quando se tem dinheiro. Olhem, eu já disse: não há nenhuma crítica ao ícones da sociedade ocidental e se você pensar assim, posso apenas dizer que você é burra ou burro. A crítica é a você. Afinal, há quantos dias você está limpo?