Do chão, o sopro divino

Posso olhar fixo para o chão, tanto que acharei com certa perspicácia alguns insetos que rastejam no chão. Não só vermes, nem insetos, mas raízes, cheiros, líquidos secos, lágrimas choradas, escarros expelidos, palavras em desuso, despachos econômicos... é de quatro para o chão que a diversidade do fracasso promove a riqueza do nosso solo, que se renova. Do bem e do mal, além de tudo, da realidade.

Às vezes quando nos chateamos, frustramos ilusões concebidas, sonhos e quimeras, ponhamo-nos cabisbaixos. O pesar do crânio e o olhar menos reto para o sol logo perscruta e pesquisa onde se pisa, e a realidade emerge.

Estamos tão acostumados a ver de pé que esquecemos os cadafalsos dos caminhos. O que nos impede o caminhar macio para os pés, por mais reto que seja a via? As pedrinhas, os insetos que mordiscam nossas beiradas desprotegidas, todo o caminho nos quer um pedaço de nós...

e então, inventamos sapatos.

E se fossem solução, seriam eternos, e nós trocamos sapatos como trocamos de suor. E quanto desgaste! E quantos calos! E quando achamos bons calçados, a plenitude que invade se esvai, pois durará alguns anos e em alguns anos, serão trocados. Os caminhos são árduos.

Então, por que a sede de solução definitiva? Nada acaba por ser mais durável que nosso caminho, e quantos sapatos denunciarão a longevidade de cada trajeto, irão e virão, duros, macios, tortos, que protegem, calejam...

Meus caminhos me seduzem os sentidos para que os achem mais doloridos que de alguns. De fato, os são, mas não quero vê-los assim. São reais, somente. Tecidos ou entrelaçados, entrecruzados, embolados ou colididos. De viés.

Como um ponto que se emaranha na agulha, o novelo da vida que escapa às mãos da camponesa. Uma cor emotiva, aliada ao gesto experiente da mão real vão traçando formas ao bordado, essa minha história. Algumas são pequenos apoios, outras estão lentamente em construção... uma longa colcha de retalhos, de renda? Um chale, um cobertor? Para a realidade, tudo, até mesmo que um fio salte e grude n'algum lugar poroso, desmancha todo meu árduo e longo projeto de ser cobertor, chale, objeto de proteção. Talvez um pé calçado por uma meia de tricô seja o agente causador do fim de meu projeto, pisando a borda da meia em algo pontiagudo, enquanto caminho por um labirinto que já conheço o perigo e que o enfrento. Carrego comigo, meu fio de Ariadne.