Atropelamento de outono
Um: Todo aquele cinza era culpa do outono. O frio começou há mais ou menos uma semana. Vinha fazendo muito calor, daquele calor de murchar bola de futebol, até que choveu no fim de uma tarde e foi até de manhã; chuvinha fina e com vento. Daí em diante só fez esfriar.
Quando saí da cama já não chovia mais. Ardeu a boca toda só de bocejar, principalmente nos cantos. Passei muito frio durante noite, meu nariz estava trancado e escorrendo. Deveria ter dormido de meias. Na rua ventava o vento afiado do frio que entra bem nas orelhas da gente, e a cidade toda andava encolhida e de braços cruzados, desviando das poças. Minhas roupas estavam amassadas de ainda anteontem, e também minha cara estava amassada, e todos os meus pensamentos estavam desorganizados porque eu tinha muito sono, de nem perceber as pessoas passando do meu lado; não me dava conta que minhas pernas se moviam, elas sabiam o que fazer, me levariam até lá e só. Mas aonde eu ia mesmo? Era automático. Eu não erraria o caminho, o chão se afastava e voltava aos meus pés, no movimento vertical e horizontal que têm as caminhadas.
Nesta manhã em especial eu estava mais sonolento que de costume. E mais a merda da neblina pra atrapalhar.
Outro: O cinza era por causa do outono, que começou há uma semana. Tudo na cidade tinha cor de frio. O céu à noite era vermelho no horizonte, e durante o dia tentava um azul-petróleo fazendo degradê. Eu enxergava em lomo¹; tudo era cor de palha, cinza, em tons pastéis e desfocado devido a neblina leve.
Desde que cheguei à cidade pra tentar tudo de novo, eu só pensava na vida antiga, por causa das pessoas. Ainda não havia encontrado ali quem me agradasse, qualquer que fosse o agrado. Precisava me apegar à beleza do dia, apesar das poças,e aproveitar para andar à passos firmes, de ombros contraídos contra o pescoço e mãos no bolso; coisas que tornavam feliz um infinitésimo de dia, para que, no final, o saldo fosse de milhões de infinitésimos felizes e eu pudesse dizer que tive um dia foi bom. Assim eu fazia minha felicidade; aos pedaços, há muito tempo. Precisava de pessoas, pra fazer a felicidade a partir de grandes coisas, e boas coisas. Mas elas não apareciam, apesar de estarem por toda parte.
Caminhando, olhava nos olhos de quem passava implorando que parassem e oferecessem amizade. Fazia isso há dias, encarava qualquer um.
Nesta manhã em especial, vinha um rapaz de cabeça baixa, e minha condição me fez pensar nos vários problemas que levariam alguém a ignorar a arte de um dia frio. Ele só olhava para os próprios pés e eu olhava fixamente para seu escalpo loiro e bagunçado vindo em minha direção, sem prestar atenção na calçada. E tropecei.
Os dois: Só levantei a cabeça porque precisava atravessar a rua, e vi um cara que me olhava. Ele estava ainda bem longe vindo na minha direção, e um segundo depois tropeçou na minha frente. Além do tropeço grotesco, o que me impressionou foi a rapidez com que andava. Ou o tempo que também não corria normalmente na minha cabeça. Eu tinha muito sono, estava dormindo em pé. Desci da calçada para a rua, novamente de cabeça baixa, enquanto o outro devia estar se recuperando do tropeço. Do mesmo jeito que não me dava conta das pessoas, nem das casas e nem do céu, não me dei conta de um carro que vinha. Me atropelaram bem na faixa! Com certeza nessa hora acordei, rolando pelo asfalto. Montes de rostos faziam roda acima de mim; meus olhos estavam semi cerrados e eu não sentia tanta dor. Mas minha boca tinha muito sangue. O cara que tropeçou era o que estava mais perto de mim, e seria o único a me ajudar depois. Mas eu ainda estava estirado no chão, e não queria encostar a língua nos lábios ensangüentados de jeito nenhum.
¹: Lomografia ou lomo é um tipo de fotografia espontânea. Regras não existem, a câmera deve ser acionada nos momentos mais inesperados. Os praticantes usam câmeras especiais, que permitem a entrada de luz no compartimento do filme fotográfico, dando um efeito distorcido e surpreendente. Vale a pena conhecer.