Luiza
Luiza faria dezoito anos no dia seguinte. Eu precisava por ordem naquele apartamento e convidar minha filha para um almoço. Os copos ainda estavam por toda a parte, o carpete cheirava à vodka, cigarro, sexo e vômito. Olhando dali, o quadro do Solidariedade já não me dizia nada. Não passava de um retângulo vermelho ao lado da janela. As janelas; abri-las seria um bom começo para tirar o mau cheiro.
Tropecei em uma sacola que me fez lembrar uma situação constrangedora. Saindo do restaurante onde almoço de vez em quando encontrei um menino sentado ao lado da porta pedindo esmolas. Não passava dos quinze anos. Parei ao seu lado e, jogando uma moeda de vinte e cinco centavos, busquei seus olhos.
- Em casa tenho algumas roupas velhas que devem te servir. – Ele hesitou. – Vem comigo que eu te mostro, se servirem você leva.
Quem nos viu pode ter pensado que eu não passava do mendigo mais velho. Meu hálito, minha barba, meu desespero contido, tudo me vinha denunciando. A depressão era nítida. O alcoolismo, gritante.
Saindo do elevador, abri a porta para o garoto e mandei que sentasse na cadeira de plástico ao lado do sofá e ficasse à vontade. Bati a porta atrás de mim e saí em direção ao quarto, deixando o menino sozinho. Gritei que tirasse as roupas para experimentar as que eu levaria em seguida. Quando voltei para a sala com a sacola ele estava de cueca, sentado exatamente onde eu mandara, de costas para mim. Sua bermuda, camiseta e chinelos estavam no chão ao seu lado. Sentei na ponta do sofá, afastado do menino, de frente para ele.
- Qual seu nome?
- Pedro.
- Você tem quantos anos, Pedro? – No tom mais ameno que consegui atingir.
- Quatorze, por quê?
- Então você já bebe. Acertei?
- Ah, nós bebe né. - Indiferente.
O menino estava tímido, olhando pra baixo, mãos juntas contra a barriga definida, com os dedos do pé encolhidos pressionando o chão, totalmente na defensiva. Tinha pés e mãos imundos.
- Entendi. – Tentei sorrir, minhas olheiras e barba deviam assustar. – Por que você não toma um banho antes de experimentar as roupas? Pode vir, o banheiro é por aqui.
Levei-o até a porta do banheiro e mandei que entrasse no Box. Uma toalha molhada pendia no gancho, deixei-a lá para Pedro.
- Lava bem as partes, hem, moleque! - Forcei uma risada descontraída. Pedro fez o mesmo.
Estava de costas para a porta do banheiro ligando o computador quando ele saiu enrolado na toalha, muito mais limpo que antes e cheirando a sabonete.
- Cadê minha cueca? Deixei ali no chão do banheiro, o senhor viu? – Protestou baixinho.
- Não vi. Pode sentar no sofá. As roupas estão ali na sacola, depois você experimenta, pode ser? - Não dei chances para conversa.
- Ta.
- Pedro, eu tenho Coca-Cola e uma vodka aqui, qual dos dois você prefere? – Ele estava sentado no meio do sofá, somente de toalha, e eu segurava a Coca em uma mão e a vodka na outra. Computador ligado atrás de mim.
- Me dá os dois. – Pedro riu por um instante. A malícia dos meninos de rua me fascina.
- Vou pegar os copos pra gente – sorri por dentro.
O menino que saiu do meu apartamento estava mais limpo e um pouco mais bem vestido do que aquele que entrou, mas isso não me importava absolutamente nada. Tampouco melhorava sua aparência, de pele maltratada e unhas e dentes nojentos. Não tão diferente de mim. Peguei o elevador com ele, pois certamente ele ficaria perdido com os botões.
Moro no décimo andar e, chegando ao terceiro, uma velha muito maquiada e de peruca ruiva juntou-se a nós. Ela não tirava os olhos de mim e Pedro, e percebeu nele um detalhe que me escapara:
- Seu filho tem um machucado bem feio na batata da perna, o senhor deveria procurar um médico. – Intrometida, me pegou de surpresa.
- Não é meu filho. – Que merda. Nada além disso me ocorreu.
Chegando ao andar térreo empurrei o garoto para fora e deixei que seguisse sozinho. Na rampa anterior à porta de saída uma bicha nada discreta que pegava a correspondência na portaria veio na direção do elevador olhando fixamente para Pedro. Ao passar por ele, afagou seu ombro como se o conhecesse e em seguida me encarou, sorrindo maldosamente. O menino cumprimentou-o com um aceno de cabeça enquanto a mulher de peruca passava pelos dois assistindo a toda a cena. Em seguida ela olhou para mim com uma expressão nada contida de desconfiança e repreensão.
A bichona estava para entrar no elevador. Não ficaria sozinho com aquilo, então fechei rápido a porta e retornei ao meu andar, fazendo-o esperar e gemer qualquer coisa de indignação em protesto à minha óbvia falta de respeito. Não queria vê-los nunca mais, nenhum dos três.
Entrei em casa e joguei fora o sabonete que Pedro usara. Bebi o que deixamos sobrar de vodka e mais um quarto de garrafa, quando lembrei que Luiza faria dezoito anos no dia seguinte. Eu estava totalmente anestesiado, como sempre, mas teria de limpar tudo e convidá-la para um almoço comigo. Eu cozinharia o macarrão de sempre, tocaria meus discos e penduraria meus quadros que ela mais gostava quando ainda era uma menininha. Depois fumaríamos qualquer coisa juntos. Entretanto, ainda estava tudo uma catástrofe, havia copos por toda parte, o carpete cheirava à vodka, cigarro, sexo e vômito. O quadro do Solidariedade já não me dizia nada (Boris Yeltsin, sim). Não passava de um retângulo vermelho ao lado da janela. As janelas; abri-las seria um bom começo para tirar o mau cheiro. A essa altura minha cabeça não obedecia mais, ordenava as imagens como bem queria, e tudo acontecia sem qualquer influencia minha.
Era quase noite quando me levantei do sofá na intenção de chegar à janela da sala. Esse caminho nunca fora tão demorado. Estava parado, decidido a caminhar, quando todos meus pensamentos vieram de assombro, juntos, envoltos em luzes e barulho. Comecei a andar, mas cada lembrança me fazia parar e beber mais um gole. Tropecei em uma sacola, parei, bebi da vodka e da Coca-cola, que estava na cadeira de plástico ao lado. Não sentia minha cabeça, eu estava leve, assistindo absorto como a lâmpada de movia acima de mim.
Enfim cheguei à janela e me virei, apoiando as costas na parede. Escorreguei até sentar no chão e chorei como se nunca tivesse parado. Os sentimentos eram exatamente os mesmos, exatamente o mesmo desespero e a mesma culpa por não ter consertado a situação a tempo. Bebi mais vodka entre soluços. Eu estava apavorado, queria minha filha naquele dia e no seguinte. Tudo era culpa de João.
Era a primeira vez em semanas que eu abria aquela janela. Do horizonte alaranjado e vermelho um enxame de vaga-lumes veio em minha direção. Jamais presenciara tamanha beleza. Era lindo vê-los se movimentando em forma de oito, infinito. Apoiei-me no parapeito e olhei para baixo, onde estava o estacionamento do prédio. Eu estava à grande altura. Levantei a cabeça com dificuldade, olhos semicerrados admirando a dança dos vaga-lumes bem a minha frente.
Ali eu sabia que não podia ter evitado. Quando apresentei Luiza a João em meu apartamento, ela ainda era minha filha, ele ainda era meu colega de trabalho e eu ainda vivia num apartamento habitável. Ela tinha dezoito anos, e ele pouco menos que eu, trinta e três. Não via nada de imoral no namoro dos dois, não ligava a mínima para a diferença de idade. No início, só eu sabia que eles se encontravam, então até eles achavam aquela relação errada! Eu já encobrira ações muito piores de Luiza. Ela não era nenhuma santa, mas eu a amava e ajudava, porque nós éramos iguais! Sempre estive nessa posição, achando normal o que os demais não admitiam. Por que somente eu não via o que todos conseguiam ver? A garrafa de vodka estava quase no fim.
Pensar nisso me fez lembrar que João também tirara meu emprego. Porra, trapaça tem limite! Fui eu quem o ajudou a subir de cargo, só me faltou iniciativa para fazer tudo o que ele fez. Eu sou o mesmo frustrado passivo de antes, mas antes eu tinha um salário.
Os vaga-lumes me chamavam para fora. Rapidamente puxei a cadeira de plástico e subi. Tomei a pouca vodka restante e larguei a garrafa, que provocou um som abafado ao tocar o carpete. O vento batia contra mim como se tentasse impedir qualquer decisão impensada. Anoitecia, tornando ainda maior a beleza do movimento iluminado dos vaga-lumes. O céu adotou um azul-petróleo, com uma linha muito vermelha ao fundo. Eu estava tonto, não podia garantir que minhas mãos me manteriam no décimo andar. Qualquer toque me faria cair.
Ainda tinha João no pensamento. Ele andava numa cadeira de rodas devido a uma lesão na medula. Não foi despedido por isso e nem havia como sê-lo. Virou chefe daquela merda toda. Derrubá-lo no chão e tripudiar sobre seu estado aliviaria parte da minha dor. Só queria poder vê-lo sofrendo da impotência que me fez passar. Ele circulava pela agência a quatro rodas e, detrás de uma mesa imensa, passava o dia dando telefonemas e ordens que faziam tudo funcionar. Agora, sem mim. As pessoas eram observadoras (mais por mesquinharia e fofoca que por qualidade intelectual), com certeza todos naquele escritório percebiam como as perninhas de João pareciam dois cachecóis, imóveis e inofensivos. Um homem daquele tamanho impossibilitado de fazer coisas que o resto fazia. Diziam que ele jogava basquete, mas eu nunca acreditei. Preferi não acreditar, era bem mais cômodo. Escolhi ignorar seu sucesso e sua recuperação. Não era justo ele ter escapado do acidente que matou minha filha. Que o levasse em vez dela!
O vento aumentava sua força, me avisando do perigo. Ou me chamando para junto dos vaga-lumes e de minha filha? Era alto também o zumbido do enxame de insetos; talvez fossem pessoas na sacada do prédio em frente, não pude decifrar. Mas eu tinha foco. Meu foco era minha filha; meu foco era o ódio que sentia por João.
Se um dia eu pudesse ficar sozinho com ele, frente a frente, eu... Eu. Não sei o que faria. - precisava de mais vodka. Começaria ficando cara a cara com o filho da puta. Chegaria meu rosto bem perto do dele e cuspiria, aliviando o pigarro, bem de perto, olhando fundo nos olhos dele. Depois dispararia a saraivada de insultos que aprendi em toda minha vida, em todos meus escritos, em todas minhas músicas e noitadas com ele e as putas alegres e as tristes.
Ele estava aleijado e não podia mais dançar; pois eu dançaria. Na frente dele. Rindo de deleite. Queria João humilhado, pedindo perdão por arruinar uma vida perfeita. Derrubaria o coitado da cadeira de rodas fazendo-a pender de um dos lados até conseguir arrancá-lo dela. Os cachecoizinhos molengas no chão, um sobre o outro, imóveis. Com os braços ele tentaria se levantar. Movimento inútil (em minha fantasia ele só faz chorar). Eu continuaria dançando. Chego bem perto do ouvido de João. De novo cara a cara com ele jogado, triste, choramingando.
- Levanta, maldito! - ódio, histeria, descontrole. Eu não raciocino mais – Fica de pé e dança! – eu me desespero, caio. - Devolve minha filhinha, João. – choro imaginário e real se misturam - Traz ela de volta!
Chuto suas pernas. João chora alto, encolhido. Eu choro alto, em pé na minha janela. Não rio mais, não tem mais graça. Só há desespero.
- Minha filhinha, João! Devolve minha filhinha. – peço aos vaga-lumes.
Abri os olhos e as pessoas em frente gritavam desesperadas; Era o zumbido dos vaga-lumes aumentando. Eu chorava.
- Luiza! Luiza! Filha!
Os vaga-lumes imploravam para que eu descesse, as pessoas choravam por Luiza, eu brilhava como os vaga-lumes. Olhei para trás e vi tudo em minha sala se movendo no ritmo ditado pelo vento que entrava. Eu podia somente chorar, quando subitamente senti que tudo ficaria bem.