Um homem chamado Carlos Carlos (Revisado)
UM HOMEM CHAMADO CARLOS CARLOS
Carlos Carlos era um rapaz comum. Batia sua bolinha no final de semana, ia pescar nos feriados e até namorava, quando sobrava um tempo entre o trabalho e a faculdade. Sua namorada era uma anã de lindos olhos azuis.
Só havia um problema. Carlos Carlos não tinha boca. Nem mesmo uma deformada para que se pudesse apontar: -
- Nossa! Olha a boca daquele cara!
Nada mesmo. A pele se formara no lugar, e nem sinal tinha. No ventre da mãe já tinham visto a falta dela. O tempo foi passando, a família não dispunha de recursos financeiros, e aquilo acabou ficando daquele jeito mesmo.
Mais tarde, na adolescência, lhe foi oferecido ajuda. Cirurgiões plásticos queriam solucionar seu problema, deixá-lo normal. Mas ele não queria. Tinha um nojo doentio por bocas. Não queria saber de maneira alguma. Não adiantava. “Vou ficar muito estranho com isso na cara”, sinalizava ele. Mesmo porque já se acostumara com a alimentação intravenosa especial que recebia.
Na verdade havia adquirido uma violenta fobia até então desconhecida, e após vários tipos de terapias, convencionais e alternativas, acabaram por desistir de cura-lo.
Quem via aquela figura estranha, como que surgido de filmes de terror, não imaginava quão feliz ele era. Por trás da membrana, onde deveria ser sua boca, podia notar-se o relevo dos seus dentes quando sorria. Ria-se por dentro, mas ria.
Carlos Carlos era um sujeito alegre. Tão alegre e de bem com a vida que nem ligava para o apelido que lhe deram: “Carlinhos Boquinha”.
Mas esse “Boquinha” tinha sonhos. Sonhos que ultrapassavam as fronteiras da cidadezinha onde morava. Queria seguir carreira política. Ser Presidente da República. Mas sem boca, diziam os amigos, não dava, era loucura, um disparate. Não porque poderia ser considerado mudo, já que não conseguia se expressar por meio de palavras. O problema era a boca, que ele não tinha. “É estranho”, diziam. “Não existe nenhum político assim, desse jeito.”
E Carlos Carlos gesticulava: “Desse jeito como?”. Ele não concordava que aquilo era uma deficiência tão séria. E saía chateado, irritado. Ninguém tirava aquela idéia de sua cabeça.
Estava no último ano do curso de direito. Sua família não compreendia essa obsessão por política, e achavam também que advocacia não era realmente a melhor profissão a ser escolhida por uma pessoa com a deficiência que ele tinha.
Incompreendido, ridicularizado e desestimulado por parentes e amigos, logo que concluiu a faculdade, terminou o namoro com a anã e mudou-se para São Paulo. Ali sim, pensava ele, iria ser aceito como um homem comum. Cidade cosmopolita, onde tudo e todos convivem com suas diferenças.
Claro que haveria discriminação, mas depois acabaria se integrando. As pessoas se acostumariam. Uma cidade daquele tamanho, com todas as coisas estranhas e esquisitices de uma grande metrópole, seria bem mais simples misturar-se, acabando por fazer parte dela.
Mas não foi tão fácil assim. Nenhuma empresa de advocacia queria arriscar sua imagem em um advogado recém formado e com um rosto tão......tão.......assim, “incompleto” - -diziam eles.
Acabou conseguindo um emprego, por intermédio de um advogado que também tinha deficiência física, como assistente jurídico, em uma associação para surdos-mudos do município. Claro que não era o que Carlos Carlos pretendia, mas pelo menos sobreviveria, e manteria no alto dos seus 25 anos, alguma dignidade, e sua alimentação intravenosa de cada dia.
Meses depois se tornou o advogado titular, e com o passar do tempo acabou caindo nas graças do povo da região, já que incorporara o espírito da ajuda social, o apoio ao mais necessitado, sempre defendendo os direitos dos deficientes, até mesmo do populacho em geral. Era “Doutor Carlinhos” pra lá, “Doutor Carlinhos” pra cá. O povo se acotovelava para ver o homem que não tinha boca, mas que mesmo assim ajudava a gente simples.
Um misto de curiosidade, simpatia e admiração. E ele estava lá, houvesse o que houvesse. Enchente? Lá estava o “Doutor Carlinhos”. Desapropriação de terrenos? “Doutor Carlinhos” à frente, defendendo os humildes. Era incansável, batalhador. E não era assistencialismo barato, desses que se vê pelo país. Era a mais pura e sincera compaixão pelo próximo, coisa que anda muito em falta.
Quantas vezes batiam tarde da noite na sua porta à procura de adjutório, passagem de ônibus, botijão de gás, levar filho para pronto-socorro. Não dizia uma só palavra (mesmo porque não conseguiria), se arrumava, pegava a chave do carro e lá ia ele.
Acabou por montar seu próprio escritório de advocacia, mas sem nunca perder o cunho social.
Então, certa manhã, enquanto despachava e preparava alguns documentos para que pudesse ir até o fórum com Celso, seu fiel escudeiro, secretário, intérprete e braço direito, recebeu uma visita que mudaria por completo sua vida. Ficaram trancados na sala por 3 horas com um sujeito engravatado, “cara de importante, boa pinta” – -notou D. Sueli, recepcionista do escritório.
Depois disso ele andava pensativo, como se estivesse no mundo da lua.
Até que veio a notícia: Carlos Carlos iria concorrer a uma vaga na câmara de vereadores nas próximas eleições. Foi uma festa só. Alguns diziam que deveria entrar direto para prefeito.
Mas ele sinalizava e o Celso traduzia: “-Calma, calma pessoal. Tudo tem o seu tempo. Mesmo porque o Doutor nem eleito foi ainda. Mas se vocês ajudarem, esse sonho pode se tornar realidade”. E o povaréu se arrebentava em gritos e urros.
- - O “Doutor Carlinhos” já tá eleito. É o doutor do povo – -um gritava lá no fundo.
E pegou. Era “Doutor do povo “ pra lá, “Doutor do povo” pra cá. E onde quer que estivesse, era seguido por uma legião de simpatizantes, e mal a campanha começara, já o davam por eleito. E foi. Carlos Carlos era conhecido por toda a capital, pois seu trabalho social era abrangente, fortíssimo. Não houve um deficiente, qualquer que fosse seu problema, que não tivesse votado nele.
Quando os adversários começaram a citar seu problema físico na imprensa, com algumas brincadeiras como -“Não vai ter boca pra nada na câmara”, e coisas do gênero. Pronto! Não havia quem o segurasse. O povo se revoltou com a falta de sensibilidade dos que o criticavam, dizendo que não conseguiria vingar como político, sendo uma aberração da natureza. Mas esse foi um grande erro. Até quem não o conhecia, acabou por unir-se à causa dele. O “Doutor do povo”. O homem sem boca, mas gente como a gente.
Lá estava seu sorriso largo, que vinha de dentro. O relevo dos dentes, a membrana esticada e avermelhada, curtida por conta do sol, das incontáveis visitas às favelas e vilas da periferia. No brilho dos olhos via-se a vitória de um homem teimoso, intenso, que não desistia apesar de todas as dificuldades.
E não desistiu. Fez um ótimo trabalho no seu mandato. Sendo depois reeleito, com votação recorde.
Nessas alturas ele já era conhecido nacionalmente. São Paulo sempre foi a vitrine de tudo o que acontece no país, e na política não seria diferente.
Na sua terra natal já deviam estar sabendo das novidades. Mas Carlos Carlos, doutor e vereador da maior cidade da América latina e agora candidato a deputado federal, nunca mais deu as caras por lá. Não que estivesse inchado de orgulho, mesmo porque mandava constantemente dinheiro para a família. Era somente sua vingança, fria e saborosa, que ele sorvia da melhor maneira possível. Provara que era capaz, e que tudo podia.
Porém, Carlos Carlos tinha pressa. Na sua ânsia de poder político, queria novos horizontes. Após ser eleito deputado federal, foi convidado para concorrer a uma vaga para o senado, aceitando sem pestanejar. Já nem era conhecido somente dentro do território nacional. Dera palestras em vários países, sobre inúmeros assuntos. Era constantemente requisitado por jornalistas estrangeiros. Acabou virando o “queridinho da mídia” escrita e falada, por estar sempre disposto a prestar esclarecimentos, dar opiniões e fazer denúncias. E sempre Celso a tiracolo. Era sua voz, a única maneira dele se comunicar com a maioria das pessoas.
Como deputado, conseguiu a aprovação de uma lei criada por ele, que regulamentava e obrigava escolas públicas e privadas a incluir a linguagem de libras no currículo escolar, de maneira que todos pudessem entender e comunicar-se com os que tinham problemas de voz e de audição. Isso lhe deu força política, muito mais do que já tinha. Então, quando ganhou o prêmio Nobel da paz, foi eleito senador da república. E o senado lhe parecia pequeno.
Ele era considerado, nessas alturas, o símbolo da mudança dentro do país. Um senador atuante, sério, que nunca havia se metido em qualquer falcatrua que houvesse ocorrido. E olhe que invariavelmente tem sempre algum escândalo por estas bandas. É quase regra.
Encabeçou várias CPI's, comitês de investigações que averiguavam abusos contra os direitos humanos, e já no final do seu mandato como senador, participou da votação para o impeachment do Presidente da República.
O país atravessava uma crise política enorme. Fora descoberto um dossiê completo de como o presidente vendera benefícios à empresas estrangeiras que exploravam recursos da Amazônia. Toda a cúpula do governo caiu. Foram ministros, secretários, assessores diretos do presidente, seu vice e alguns senadores, que quando encurralados perante os comitês acusadores, entregaram o chefe-mor da nação, o cabeça da operação, que praticamente estava vendendo para a iniciativa privada estrangeira o pulmão do mundo: a Floresta Amazônica. Ou pelo menos o que restava dela.
E o nosso senador Carlos Carlos estava lá. Maduro, mais consciente de si mesmo. Ele sentia que agora era a sua hora. Seu sonho estava se tornando realidade. Não era somente mais um delírio infantil, essas coisas de criança que quase ninguém liga. Ele sempre deixou transparecer isso para os pais, mas eles jamais imaginariam que isso pudesse um dia vir a acontecer.
Agora o presidente deposto. O Brasil sem um comandante, dirigido pelo congresso. Seriam convocadas eleições presidenciais. E Carlos Carlos já era candidato. Entraria como sempre para ganhar. Mas aí apareceram aqueles problemas dentários. Aquela dor. Nunca havia sentido antes. Terrível. Mas foi postergando o problema. Em silêncio.
Já no primeiro turno das eleições, tendo por uma pequena margem, ficado em segundo lugar, não agüentava mais. Suportara em segredo aquilo. Notaram que ele estava estranho, mais sensível. Imaginaram que poderia ser a tensão das eleições. Mas não. Seus dentes doíam. Não os usava, nunca havia mastigado qualquer coisa em toda a sua vida. Mas mesmo assim o martirizavam.
Celso foi o primeiro a saber. Pouco mais de três semanas para o segundo turno das eleições.
As pesquisas mostravam que ele estava 19 pontos acima do outro candidato. Mas aquela dor o quebrantava. Resolveu operar, afinal eram somente seus dentes. Besteira ficar adiando.
Teriam que fazer uma pequena incisão para a cirurgia. Mas fariam mais que isso. Planejaram lhe dar o que ele não tinha. Não conseguiriam, obviamente, fazer um tratamento dentário em um homem sem boca. A verdade é que não queriam mesmo resolver aquele problema da maneira mais simples. Todos seus correligionários e assessores de imagem concordaram. Até Celso consentiu. Seria melhor para ele. Imaginem, um homem sem boca na presidência do país. Não dava.
Mas Carlos Carlos não sabia de nada do que haveria de acontecer. Tudo em segredo. Anestesia geral e pronto! Ele seria um homem novo, poderia ter uma família como todo mundo, alimentar-se normalmente. Agradeceria depois aquela iniciativa dos companheiros.
Vinte dias para o segundo turno. Líder nas pesquisas. Era o virtual Presidente da República.
Saiu na imprensa que o candidato Carlos Carlos havia sido internado às pressas.
- Mas não se preocupem – avisava o assessor de imprensa. Somente uma infecção dentária. Reconstruiriam-lhe a boca também. Serviço de primeira. Logo estaria de volta.
Algumas horas depois havia na Internet uma foto-montagem de como o futuro Presidente ficaria após a cirurgia. O impacto! A surpresa!
Carlos Carlos já não tinha dor. Mas sentia alguma coisa estranha enquanto tateava o curativo. Não sabia explicar. Perguntou a Celso, que não desgrudava da cama do hospital onde estava internado.
Celso lhe respondeu: “O Doutor agora tem boca. Tudo certinho, no lugar. Fique tranquilo, vai dar tudo certo”.
Depois disto, Carlos Carlos não se comunicou mais com ninguém. Estava em estado de choque.
Aparecia nos últimos comícios, mas sem o brilho de antes. Não se dirigia mais ao povo.
Lá fora as notícias não eram nada animadoras. Havia caído nas pesquisas. A população não tinha gostado da sua nova imagem. Não era mais o “Doutor do povo”. Agora era “um qualquer”. Mais um político oportunista querendo se aproveitar da boa vontade das pessoas simples. Os havia enganado. Nem discurso dava mais.
Finalmente tinha mostrado seu verdadeiro rosto, e os eleitores, mais desconfiados do que nunca, o rejeitaram assustadoramente.
Dizem que nunca mais olhou num espelho, ou qualquer coisa que pudesse mostrar seu novo aspecto.
Três dias depois de perder as eleições para Presidente da República, suicidou-se com um tiro na boca. Antes matara Celso, também com um tiro na boca .
Todos concordaram que ele não conseguira superar a dor da derrota. Correram também boatos que Celso era amante de Carlos Carlos. Celso o teria traído com uma modelo no Rio Grande do Sul, durante visita que fize-ram por lá na campanha.
Mas era tudo mentira. O fim de Carlos Carlos deu-se porque ele não suportaria viver com aquilo no rosto. Uma boca.
Certamente ficara triste por ter perdido as eleições. Mas a derrota não foi o motivo.
Vingara-se de Celso porque ele havia traído sua confiança. Anos e anos, constantemente juntos. Sempre dissera ao seu intérprete que preferiria a morte a ver seu rosto mutilado.
Celso tinha conhecimento de tudo. Morreu porque sabia, e não fez nada para impedir aquela desastrosa cirurgia. Poderia ter sugerido outra solução, ou tê-lo alertado. Mas não.
E a nação que conhecera essa grande personalidade, e o ajudara a galgar todas as dificuldades, entregou-o à escuridão do esquecimento.
Décadas depois, nem mesmo os livros de história o citavam. Ninguém mais se lembrava do homem chamado Carlos Carlos.
FIM