DES( E )ENCONTROS - Carmem Lúcia e Metallica

Perdida na imensidão do pensamento, ela seguia. Batia-lhe no rosto gotas de chuva, parecia não sentir. Seguia com pés na enxurrada que levava consigo as dores que trazia em silêncio.

Tão menina ainda, corpo franzino e com uma carga tão expressiva de problemas.

Da janela era observada... 22º andar. O binóculo atravessava chuva, as lágrimas, até encontrar seus pensamentos. Cabisbaixa ela seguia; sem rumo, sem destino. Talvez um dia estivesse ao alcance das mãos e negara-se ao ultimo ato do desespero. ...

Os olhos por trás das lentes focais pareciam seguir cada um de seus passos, na certeza de que logo ela desapareceria de seu alcance, mas jamais fugiria de um lugar onde aquela pequena alma perdida estava guardada:

De seu coração tímido e apunhalado.

Imponente como uma rocha, a menina conseguiu vencer a barreira chuvosa que lhe surrava a face sem piedade, e como os olhos a observar haviam previsto, ela desapareceu novamente, deixando apenas as gotas que atingiam a calçada, agora vazia...

Mas a calçada só não era mais vazia do que o quarto 2228 do vigésimo segundo andar, onde outra alma também perdida clamava por um tanto de coragem. Algo que ele sabia que jamais iria chegar, como se fosse um pedido impossível, um desejo ambicioso demais.

Sempre fora um homem tímido, franzino, cheio de defeitos e limitações. Um rapaz que passara a vida inteira de maneira despercebida de todas as meninas de sua idade. E movido pelo pudor, ele retribuía da mesma forma ignorando a todas elas...

Não por desinteresse, não por esnobismo. Mas pela ausência de coragem, por pura timidez e consciência de sua fisionomia fraca e desajeitada...

Até o dia em que seus olhos encontraram-se com os dela pela primeira vez naquela tarde, na saída da escola. Nada de chuva, e nem de binóculos, sem a longevidade de muitos andares a separá-los. Tão próximos que a menina melancólica ergueu seu semblante, despercebida, em momentos raros. E o rapaz obedeceu ao coração que lhe ordenara para que parasse, e notasse finalmente o seu grande amor, e que ele pudesse sentir o seu cheiro doce, que enxergasse além de toda a dor estampada naquele rosto de traços finos e meigos, ao mesmo tempo sofrível e solitário...

Nem uma palavra, nem murmúrios saíram de seus lábios naquele instante. Somente o olhar atravessando-lhes séculos de desejos incontidos. Onde esteve todo este tempo? Por que só agora o destino cruzara-lhe os caminhos?

Tarde demais! A menina apertou forte contra o peito sua única companheira: uma pasta de cor vermelha como se fosse um escudo protetor, como se dentro dela estivasse guardada toda sua história. Um último olhar, dentro de o primeiro olhar em anos de espera. Virou-lhe as costas e os passos miúdos fizeram-se ouvir por vários quarteirões.

Ficara ali, parado, entrecortado em dores lancinantes a vazar-lhe o peito. Por quanto tempo não soube, pois a madrugada chegaria tão de mansinho cobrindo-lhe o corpo desajeitado com sua névoa fina. Arrastou-se para casa e ficou à janela do 22º. Ali seria seu sepulcro!

Mais uma vez, a menina abre a pasta vermelha, e seus olhos devoram aqueles exames. Tenta mais uma vez dentre aqueles milhares de números brancos feitos seus glóbulos, encontrar algo que seja um sinal de vida, um filete que fosse.

Seus dias pareciam estar contados, não havia mais tempo para ser feliz. Mas a vida havia feito a parte dela, colocando-lhe frente a frente com aqueles olhos que tanto sonhara. Eram reais!

Então, a garota cabisbaixa da escola se deu conta de que um dia havia sido notada por alguém. Ela olhava para os cadernos abertos em cima da cama, quando percebeu que a vida que tanto procurava em meio á cálculos de matemática, filosofias metódicas, e teorias conservadoras não estariam lá. Mas sim dentro de sua mente. A mesma mente que lhe trouxera a lembrança daquele olhar guloso, e cheio de desejos...

Contudo, a garota havia notado aqueles olhos apenas uma vez. Era muito pouco pra decifrá-los. Era impossível entendê-los. E por que razão ela não conseguia parar de pensar no rapaz? Afinal de contas aquilo fora apenas uma troca de olhares. Com certeza ele já deveria ter-lhe esquecido. Talvez ele tenha namorada e a ame de verdade. Talvez ele tenha olhado pra ela simplesmente porque de fato era ela quem não parava de olhar sequer um minuto. Sua cabeça rodopiava e seus pensamentos formigavam. Onde quando iria encontrá-lo novamente? Teria tempo?

Mas a verdade era que o olhar que ele lançara sobre ela era diferente. Era quente e terno. Não era como os olhares indiscretos de outros garotos, nem medidores de pessoas que faziam julgamentos de sua solidão. Não. Aquele olhar era diferente...

Um monte de possibilidades, e só havia uma maneira de acabar com todas elas: era falando com ele.

Mas então, a garota lembrou-se de sua mãe. E a lembrança trouxe a voz conservadora dela que chegou a sua mente como um delator feroz, e fez-lhe acusações. As mesmas que sempre fazia quando um pensamento libertino lhe invadia a consciência, tentando tornar-lhe lasciva.

Porque a voz de sua mãe em algum lugar dentro da mente insistia em dizer que, uma garota deveria ser recatada, deveria saber esconder seus desejos, deveria ser exemplo para toda a sociedade. Sem jamais ir ao encontro de um homem, como fazem as prostitutas, como fazem as mulheres da vida...

E no interior do apartamento 2228, reinava apenas a solidão em forma de lágrimas. Na memória, o rostinho lindo de uma garota segurando uma pasta vermelha contra o peito. E como se fosse uma ladra, ela usurpava todos os seus pensamentos, seu entusiasmo, sua força... Por que estava tão abalado? O que esta menina possuía de diferente?

Era preciso recuperar tudo que perdera de volta... Mas como?

O rapaz olhou para o binóculo em cima da cômoda. Aquele instrumento representava a maior proximidade que sua timidez conseguia em relação a ela. Por que as coisas eram tão difíceis? O rapaz se perguntava. O que os outros jovens tinham que faltava em si? E a resposta veio automática até sua mente:

Coragem!!

Mas onde se encontra o elixir da coragem? Como se consegue isso? Como se faz para adquirir aquilo que nunca se teve? E as perguntas enchiam sua cabeça confusa e apaixonada...

E em certos momentos de desespero por algo que ele sentira cada vez mais distante de suas mãos, o parapeito da janela do vigésimo segundo andar começava a parecer tentador. Talvez voar para a morte fosse a única solução cabível...

A adrenalina rolava solta dentro de uma boate. Fumaça entorpecia os sentidos, ofuscava a visão. Música alta impedia que vozes chegassem ao destino. Pelos cantos podiam-se ver na penumbra corpos emaranhados, outros acompanhando o ritmo frenético do rock alucinante. Alguns se arriscavam num baseado. E a noite seguia perversamente estonteante.

Em um canto isolado ele estava...

Observava o agitado cenário tentando colocar-se nele quando seus olhos cruzaram a densa cortina de fumaça. Não, não podia ser verdade. Claro, estava tendo alucinações de tanto aspirar o ar com cheiro de maconha daquela panela de pressão humana...

Cabelos longos, soltos, minissaia, salto altíssimo, rosto impecavelmente maquiado adentrou a casa na certeza de estar sendo devorada pelos poucos olhos que ainda estavam “normais”... Ela desaparece atrás da névoa branca como se houvesse sido engolida. A menina carrega nas mãos um copo de uísque sem gelo e o vira num só gole, ela faz uma rápida careta, e começa a dançar com os olhos fechados, braços envoltos ao corpo... Seus movimentos lentos não acompanhavam as batidas frenéticas da música... Ali estava alheia a tudo e a todos. Só queria experimentar a sensação de liberdade, nem que fosse por poucas horas. Longe da reprimenda da mãe, da pasta vermelha, do medo e insegurança que tanto a cercava. Esquecer aqueles olhos que tanto marcaram sua vida! Seria possível?

Ele, depois de algum tempo consegue encontrá-la em meio à fumaça no meio da pista de dança, deslizando sensualidade, de uma forma diferente...

Suavemente o rapaz, como que enfeitiçado, vai de encontro a ela e a abraça por detrás. Ela não reage e continua os movimentos lentos, apesar da continuidade agressiva da melodia. Ele aperta-a mais sobre si e ela aceita... Dançam colados por longo tempo até que não agüentando de desejo, viram-se de frente e ainda de olhos fechados, abraçam-se demoradamente, como se seus corpos fossem apenas um. Ele um pouco mais alto sentia o cheiro doce dos cabelos dela, enquanto ela, pousada com o rosto em seu peito, percebia um leve aroma de sabonete que vinha do corpo dele.

Mais uma dose de uísque e dessa vez ele acompanha. Sem que palavras fossem necessárias, beijam-se desesperadamente, como se houvesse a necessidade de reaver o tempo perdido...

Nenhuma pergunta...

Nenhuma resposta...

Somente desejos e coração descompassado...

Mãos dadas, retorcidas, pernas trôpegas pelo excesso do desejo, ou mesmo que fosse do álcool. Bocas movendo-se uma contra a outra, a língua sentindo o gosto da outra enquanto entrelaçavam-se... Finalmente estavam juntos, mergulhados na vontade louca no meio da fumaça que os camuflava como se não houvesse ninguém por perto. E ambos talvez desejassem estar sozinhos naquele instante, no beijo insano com gosto de bebida, no fôlego que faltava a cada segundo prazeroso, nas mãos dele que percorriam o corpo tremulo de desejo dela, ao mesmo tempo em que ela apertava cada vez mais o corpo ardente dele contra o seu...

Um pequeno intervalo...

Ela olhou dentro dos olhos dele...

Sem palavras, apenas olhares era suficientes para eliminar toda dúvida que existiu ao longo do tempo...

A fumaça de dispersava lentamente...

Ele acariciava com delicadeza o rosto dela...

Pessoas gritavam, empurrando-se ao redor do casal...

Ela sorriu para ele como se acabasse de realizar o seu grande sonho...

A multidão aglomerava-se, perdida, procurando escapar de algo...

Ele sorriu de volta como se estivesse envolvido nos braços de seu maior presente...

Parecia ser uma briga entre gangues dentro da boate...

Ele e ela abraçados no meio da multidão enlouquecida...

Súbito, ela pousou o rosto em seu peito novamente. Estava outra vez afundada em seu abraço, como se não quisesse sair dali. Ele retribuiu envolvendo ambas as mãos sobre o pescoço dela.

Havia um líquido vermelho escorrendo pela nuca da garota...

O rapaz percebeu assustado o sangue envolvido entre seus dedos. Ele segurou o queixo dela, erguendo um rosto sem vida diante de seus olhos...

Como um navio a naufragar ele abaixou-se lentamente sentando no chão da boate, depois a deitou em seu colo e acariciou o lindo rosto agora estático da garota...

Provavelmente uma bala perdida acertara seu grande amor...

Ele não falava com ela, mas tentava captar sua atenção com os olhos. O rapaz parecia confuso, como se lutando contra algo que não compreende...

Quisera ele que aquela bala tivesse lhe atingido, poupando-lhe daquela dor...

A música parou de tocar...

As pessoas em desespero corriam desajeitadas pela pista de dança...

O rapaz percebeu outros corpos perdidos, caídos moribundos ao seu redor...

Deu-se conta de que a mais solitária entre todas aquelas almas era a sua própria...

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Existem coisas que inevitavelmente jamais mudam com o passar do tempo. Outras mudam por completo, como se não apenas diferisse, mas se transformasse totalmente, como uma aberração.

O velho teve um infeliz devaneio quando inusitadamente comparou sua mão enrugada em um aperto firme com a da jovem moça que ele acabara de salvar a vida.

A mulher entrara despercebida em um cruzamento. Olhava para o chão, sem dar-se conta de que o semáforo estava fechado para pedestres. Súbito, as mãos calejadas e sujas do velho seguraram firmes em seu ombro, trazendo-a de volta para a calçada, enquanto sua voz gritante cuidou de acordá-la de volta ao presente. Um carro apressado passou á poucos centímetros da mulher...

– Cuidado, Moça!

Depois disso, ela agradecida, contemplou seu salvador enquanto apertava sua mão. Diante dela, um homem velho, de barbas longas, vestes sujas e rasgadas... Um mendigo à primeira vista se não fora pelo linguajar e porte altivo, este era algo que o tempo não conseguira modificar.

– Não precisa agradecer – disse o velho, sua atenção ainda vidrada na mão fina e delicada da moça, e comparando com a sua desgastada, enfraquecida, e suja embaixo das unhas – tome cuidado da próxima vez.

– Tomarei, prometo. – respondeu ela, com um leve sorriso.

O velho soltou a mão da mulher e foi embora em outra direção. Ela ficou por um tempo, parada, estática, a observar seu esfarrapado salvador sumir na multidão. Ele levava um binóculo pendurado no pescoço, detalhe que certamente faria com que ela se lembrasse, caso voltasse a encontrá-lo pelas ruas da cidade.

Longe da mulher, sentado naquele banco de praça, seu companheiro nos últimos anos, o velho pensou no que havia feito. No quanto acabara de ser importante na vida daquela distraída alma. Apenas alguns segundos fizeram a diferença entre a vida, e a morte. O velho estava no lugar certo, havia sido eficiente o bastante para salvar a vida de alguém que ele provavelmente nunca mais veria em sua vida. Mas fora amargamente infrutífero no passado, quando precisou ser rápido...

Há trinta e cinco anos atrás.

Quando tivera a chance de proteger a amada em seus braços...

Quando os poucos segundos que separavam a vida e a morte dela...

Estavam ao seu alcance, e mesmo assim ele não foi capaz de enganar a morte como fizera há pouco...

E a velha senhora morte trajando seu manto negro, levou sua doce amante sem piedade...

Sem pedir licença...

Deixando sua vida em migalhas, como as que ele jogava aos pombos todos os dias sentado no banco da praça. E olhando para os pombos ao redor de seus pés, imaginava onde estaria a alma da garota que passava todas as tardes defronte ao prédio onde morava... 22º andar de sonhos interrompidos...

Qual seria o felizardo mundo que agora poderia vislumbrar sua delicada beleza, protegida apenas pela pasta vermelha como se fosse um frágil escudo enquanto ela caminhava em direção á escola...

Ela havia fugido para um lugar em que seu binóculo não mais poderia espioná-la...

Seus olhos miúdos e perdidos na imensidão do pensamento percorriam cada canto do firmamento. Buscava na brisa da noite o perfume que ficara impregnado em seus poros, naquela única noite em que pudera senti-la.

Que nome se dá a um anjo? Quase nada soubera dela...

Em sua lembrança ficou a menina tímida, franzina, molhada de chuva com uma pasta vermelha apertada contra o peito e seus segredos ali contidos e enterrados consigo... A mulher que esteve por tão poucas horas em seus braços corroborando o amor que traziam e não tiveram tempo de usufruir...

Onde estaria a alma dela agora?

Na verdade, talvez o velho estivesse pensando onde estaria a sua própria...

Carmem Lucia & Metallica

(Gostaria de agradecer a escritora e minha amiga Carmem Lucia, por toda sua habilidade e sabedoria dispensadas nesse trabalho. Á você Carmem, minha mais sincera reverência. Foi uma grande honra pra mim trabalhar ao seu lado nesse texto.)

Carmem Lucia
Enviado por Carmem Lucia em 30/10/2009
Reeditado em 30/10/2009
Código do texto: T1896006