É o Futuro
É o futuro. Vários seres humanos foram destruídos pelo cataclismo que ocorreu. A raça humana quase foi extinta. Os que restaram procuraram ficar o mais próximo dos locais onde houvesse comida e bebida. Nos centros urbanos isso significava ficar próximo aos supermercados. Mas, eram muitos humanos para pouca comida. As brigas eram freqüentes. Mas, isso só ocorria próximos aos supermercados mais famosos e nos quais as pessoas lembravam por serem os que mais anunciavam ter uma quantidade de estaque realmente grande.
Eu não. Continuei no local onde ainda moro. Todos do bairro foram destruídos, ficaram inválidos e morreram ou foram embora, também acreditando que próximo aos supermercados grandes haveria comida suficiente. Fiquei só em uma extensão de terra considerável. Tenho aqui vários pequenos mercadinhos que me dão alimentação. Claro, a parte da comida que ainda não estragou. Já faz dois anos do grande acontecimento. Tudo o que era feito a partir de animais apodreceu. Arroz, feijão e outros alimentos ensacados ainda resistem, mas estão próximos ao fim do prazo de validade.
Minha sorte é que este bairro sempre teve árvores frutíferas e outras plantas comestíveis. Depois de dois anos, as plantas já não estão demonstrando terem sofrido com as mudanças climáticas ou já conseguiram se recuperar. Aqui não houve devastação total, mas muitas plantas morreram. Várias medicinais. As quebra-pedras desapareceram e os pés de sálvia se transformaram de um modo que se tornaram venenosas. Mas, já estava no tempo da terra se recuperar, os alimentos industrializados não dariam mais conta de sustentar o meu corpo.
Tem sido difícil essa solidão. Mesmo quando as outras pessoas e minha família estavam aqui, não tinha companhia delas, mas agora não tenho a companhia de ninguém. Sei que isso é resultado da minha resistência, pois eu poderia ter desistido, poderia ter sucumbido junto com eles ou ter cometido suicídio como aqueles que não estavam mais suportando a vida difícil de agora. Acabei de enterrar a última pessoa que estava vida. Minha vizinha. Ela decidiu que tanto sofrimento não era justo. Não entendi onde entrava a justiça no ato dela. Mas, era o ato dela. Direito dela, digamos assim.
Vez por outra, passam alguns viajantes. Pessoas que não afluíram às margens dos supermercados e que vagam pelas imediações das cidades buscando comida e local para descansar. Algumas contam histórias em troca de comida, outras roubam mesmo. Já tive comida furtada por duas vezes pela mesma pessoa. As pessoas estão tão transtornadas com o que aconteceu que parecem ter perdido o senso de direção e de tempo. Na segunda vez em que levou minha comida, o homem que roubou não lembrava ter estado aqui. Tentando fazer um acordo amigável, perguntei seu nome, ele não soube responder. Ficou mais nervoso, bateu em mim com muita força e fugiu com a comida que encontrou.
Algumas vezes, aparecem pessoas trocando serviço por comida. Pessoas que concertam coisas, que constroem, enfim, que estão dispostas a fazer qualquer trabalho por comida. Numa dessa vezes tentei fazer com que o homem ficasse. Ele era negro, muito grande, musculoso. Pensei em dois motivos para fazê-lo ficar. Primeiro: ele poderia concertar as coisas daqui, me ajudar no cultivo e na segurança. Segundo: eu ficaria mais tranqüilo em ter uma pessoa como ele por perto, afinal, eu não gostaria de ser assassinado por um quilo de arroz. Seria bom tanto para mim, quanto para ele. Mas, ele não aceitou. Aliás, ficou aqui um tempo, mas partiu depois de alguns dias. Tinha um espírito de viajante, não conseguia se fixar em nenhum lugar. Pelo menos, ele fez o trabalho de recuperação de uma casa para que eu pudesse ficar mais confortável aqui. Nos dias de chuva em sido a salvação, ou seja, quase todos os dias.
Aqui perto há uma lagoa. Para ela, dois anos também foram suficientes para se recuperar. É da água dela que me sirvo. Até hoje, nunca bebi dessa água sem fervê-la. Mas, hoje de manhã, tive uma surpresa. Enchendo os baldes, vi peixes. Depois de tanto tempo, parece que as coisas estão voltando ao seu normal. Já posso imaginar um jantar de peixe frito. Faz tempo que não como nenhum tipo de carne.
Às vezes fico tentado a sair do local onde moro e caminhar para ver outras coisas, como o mar por exemplo. Faz tempo que não tomo banho de mar. Mesmo antes do desastre, já não ia lá e agora, depois de dois anos, o mar também deve estar voltando ao seu normal. Deve ser bonito ver aquela coisa azul grande. Ainda não me decidi se vou ou não. É uma coisa que está apenas no meu pensamento.
Mas, meus dias melhoraram, mesmo, depois que achei esse caderno limpo e caneta. Tenho anotado muita coisa. Tenho refletido muita coisa desde que comecei a escrever. Acho que por não ter sofrido tão intensamente o cataclismo, fui pouco afetado e não me sinto tão mal por estar vivo. Como eu disse, muita gente nem lembra o próprio nome. E como eu tenho extravasado de alguma forma o que sinto, tenho servido de ajuda às pessoas que passam por aqui. Mesmo que eu já tenha mudado o assunto de direção várias vezes nesta página.
Sinto que sou diferente das pessoas que passam aqui porque elas me dizem. Esse homem negro que eu gostaria que continuasse por aqui, me disse que era insuportável ficar perto de mim porque eu agia como se nada tivesse acontecido, eu rebati dizendo que era justamente o contrário, eu ajo da forma mais consciente possível do que aconteceu, eu tento continuar com a minha vida apesar e por causa de tudo o que aconteceu. Ele não conseguiu ficar aqui apenas pela sua vontade de andar. Não conseguiu ficar perto de mim.
Fico pensando: no que sou diferente? Afinal, eu só tento continuar a minha vida. Ela se transformou, mas não parou. Uma mulher que passou por aqui pedindo comida e local para descansar e a quem também convidei para continuar aqui, depois de três dias começou a se sentir mal perto de mim. Engraçado, ela enjoava toda vez que me via. Perguntei se ela estava grávida. Ela disse que não. Ela só não conseguia chegar perto de mim sem se sentir mal. Mais três dias de enjôo e ela foi embora. Saiu durante a noite, enquanto eu estava dormindo. Acho que queria evitar me machucar, mas não conseguiu. Ainda fico pensando no que eu tenho de diferente que fez e faz essas pessoas se afastarem de mim. Continuo aqui, vendo o ao redor se transformar. Vendo as mudanças que a natureza sofre, como ela consegue superar as dificuldades e crescer. Tenho imitado ela. E quanto mais percebo as mudanças dela, mais percebo minhas raízes fincadas mais forte, mais sinto meus galhos crescerem. Ainda não atino que direção a natureza está tomando, mas assim que perceber vou segui-la.