Nesta cidade a morte é mais um habitante

Nesta cidade a morte é mais um habitante. Ela é tão presente que os outros habitantes não conseguem pensar a sua cidade sem ela. Vários afirmam que a morte nasceu aqui e aqui ela quer morrer.

Não tenho vocação para andarilho, por isso parei aqui. Aqui não há nada. Aqui todos esperam encontrar a morte. Acho que por isso parei aqui. Já estava cansado de caminhar. Se a morte é mais um habitante daqui, gostaria de encontrá-la e perguntar o que há depois.

Saí de uma cidade, mas tenho a impressão de que mesmo mudando de cidade a cidade não muda. Tudo o que havia lá, eu vejo aqui. Algumas melhorias, outras pioras. Mas, tudo. O mesmo.

A única diferença é que a morte, aqui, é mais um habitante. Isso torna as pessoas alegres. Cada dia é um baile. Cada dia é uma festa. Tudo é colorido. Tudo é vivo. A morte alegra as pessoas que aqui moram.

As pessoas não se preocupam com o que há depois. Várias foram as tentativas de entabular conversa com elas sobre o que elas esperam depois da morte. Elas sempre dizem que não esperam nada da morte. Elas esperam da vida. Elas esperam a vida.

Sempre há mulheres grávidas. Crianças correndo. Homens que se banham em rios. Tudo se movimenta ao ritmo de um violão bem marcado. As plantas parecem participar dessa festa, dessa comemoração contínua. Não há um dia em que as árvores não tenham frutos, que as flores não estejam em seu momento mais intenso. Há amor a vida, mesmo com a morte tão perto. Aliás, há amor a vida por terem a morte tão perto.

A cidade parece andar no passo das negras de roupas coloridas, nos boleros que se tocam no bordel a noite, nos adolescentes que procuram descobrir o sexo, nas crianças recém-nascidas e maiores que correm o tempo todo, nos idosos que falam como se tivessem mais de mil bocas e mais de mil assuntos atrasados.

A cidade é uma ruína. A todo tempo topa-se com a possibilidade de se ver a morte.

Os velórios são uma festa de comemoração à vida. Celebra-se o ir embora daquele de está deitado na mesa e ao mesmo tempo comemora-se a chegada do neto daquele que foi embora.

Não há luto. O preto das roupas serve apenas para marcar as cores mais claras, para destacá-las. O branco é apenas fundo de cores fortes. Vermelho sempre acompanhado pelo amarelo, pelo azul forte, pelo azul cor do céu. As mulheres parecem que saíram de um campo de cultivo de flores e que as carregam costuradas as roupas. Tudo é tão colorido que os olhos doem. Todos dizem que as cores fortes servem para acordar a alma, para acordar a vida pela qual a alma tem que lutar. A vida é algo tão difícil que a morte serve, apenas, para marcar a alegria da vida que se vai. Para comemorá-la. Para lembrar aos outros que os próximos seremos nós.

A cidade não tem cemitério. Os mortos são cremados. Os habitantes dizem que não é justo reter aquilo que já não nos pertence mais. Eles queimam o corpo e usam as cinzas como adubo das plantas. Creio que as pessoas não esperam nada depois da morte, porque crêem que continuaram vivas nas plantas que se alimentaram de suas cinzas, nos animais que se alimentarão das plantas, nos animais que se alimentarão desses animais e nos humanos que se alimentarão desses animais.

Os habitantes vivem por um momento: aquele em que a sua morte for declarada. Desde que cheguei e compreendi isso, observo nos rostos dos mortos uma certeza, uma espécie de confirmação, como se descobrissem aquilo que tanto esperavam. Como se visse algo no momento da morte ou logo no momento posterior aquilo pelo que sempre buscaram. Há nessa gente um desejo de morte misturado a um desejo de vida que me confunde.

Vi mortes terríveis. E quanto mais terríveis, maior a festa. Quanto mais catastrófico fosse a morte, mais honras o morto recebe. E quanto mais velha for a pessoa morta maior ainda é a festa. As mortes jovens e os suicídios são repudiados. Assim como as mortes por amor. Não há respeito por aqueles que foram a te a morte sem serem chamados. Mas, as mortes por amor a morte são o único momento em que tudo faz sentido a essa gente. Todos nasceram para morrer.

Há na cidade um culto. Todos sabem, mas ninguém comenta. Esse é o único pudor. Num mundo onde a única coisa que une as pessoas, o sexo, é a menos falada de forma honesta, aqui um espécie de morte deixa a todos aturdidos quando acontece. Todas as casas da cidade têm um túnel, que as liga a uma grande catedral em honra da morte. Há uma escultura de 20 metros de altura que representa a morte. Um grande anjo de asas negras e belas. Uma caveira colorida no topo é a cabeça. Nas órbitas da caveira grandes lentes de esmeralda branca, onde grandes tochas fazem os olhos da escultura brilhar.

De frente para essa estátua há escolha do senhor da morte num ritual onde jovens são escolhidos para servirem de sacrifícios. Não é um ritual do qual há a escolha de não participar. Todos participam. Os corações dos jovens são arrancados, como num ritual indígena, em um só golpe. O sangue do coração, ainda pulsando, enche uma jarra. Dela deve beber o senhor.

Há um sorteio para saber quem será o senhor da morte. Não sei quais os critérios. Sei apenas que fui escolhido. Bebi o sangue em parte quente, em parte frio e seco dos jovens. Bebi todo. Fui trancado aqui embaixo. E da mesma forma que encontrei aquele que estava antes de mi aqui, você me encontrou. Você terá muito tempo para descobrir tudo o que há aqui. Eu lhe indicarei muita coisa. Mas, agora é tempo de prepará-lo para o ritual de vida. Pelos próximos tempos você não terá direito a morrer. Devo prepará-lo para a vida e me preparar para a morte. Enfim descobrirei o que eles encontram na morte, aquilo que eles confirmam quando morrem.