Cheiro Podre
Bárbara vivia num apartamentinho barato na Rua Marquês de Pombal, comprado e mobiliado com metade da herança que recebera de seu falecido pai. Móveis provenientes de antiquários de todos os cantos. Quarto, sala, que de vez em quando travestia uma cozinha, e um banheiro grande com uma banheira velha. Plantas davam um clima de frescor, ou pelo menos a impressão. Elas rodeavam o terreno sempre vivas e floridas. Além de plantas, Bárbara cultivava artrópodes. Aquários e aquários de besouros, aranhas e formigas. As aranhas tinham nomes:
Márcia, Leninha, Leda e Valdete. Grandes e peludas, representavam mulheres notáveis na vida de Bárbara.
Márcia e Leninha (filha de Márcia) se tornaram grandes amigas de Bárbara. Leninha com sua voz surreal e cativante e Márcia com seus leves dedos que faziam gemer o piano. Leda foi avó de Bárbara. Senhora boa, sempre a sorrir em qualquer situação. Vó das mais vós desse mundo, que empanturravam os netos de comida e mimos. Havia criado sua neta por toda a vida e foi a causa de centenas de dias depressivos e molhados quando se foi. Valdete por fim, era a última amizade que Bárbara havia concretizado. Tornaram-se quase irmãs após passarem dias se encontrando num mesmo banco de ônibus. Eram uma o oráculo da outra. Sempre confidentes e atenciosas.
Os outros bichos, por serem muitos, não possuíam nomes, mas seus significados eram interessantes. As formigas representavam a organização de Bárbara e os besouros, traumas de infância. Quando cresciam os besouros, ela fazia questão de sacrificá-los com alguma sola de algum duro sapato. Esses ataques assassinos vinham geralmente com as crises de estresse e enxaqueca.
Todos os animaizinhos de estimação ficavam sobre uma enorme cômoda azul do banheiro (o banheiro era grande mesmo) que de vez em quando hospedava também baratas sujas da rua, que sempre encontravam jeito de entrar. Sempre.
O banheiro oferecia também a já mencionada banheira velha que era chamada de Josefa. Como não havia mecanismo de aquecimento para enchê-la de água quente, Bárbara esquentava panelas e panelas para que pudesse mergulhar suavemente nos seus costumeiros banhos de sal. O quarto era entupido de livros, roupas e objetos antigos. Telefones, brinquedos, chapéus, louças, rádios, discos... Dormia numa cama de princesa e se maquiava num espelho colonial. Não possuía computador, nem celular, nem mp3 e muito menos TV. Amava filmes e, apesar de não assistir nada em sua morada, via tudo no cinema ou na casa de Valdete, que era cinéfila compulsiva delirante.
A sala/cozinha era um espaço amplo e muito aconchegante. Almofadas pra todos os lados, banquinhos das mais variadas dimensões e cores, duas poltronas verdes e uma pequena mesinha que ora acomodava panelas e pratos, ora garrafas e tocos de cigarro. Num cantinho ficava um pequenino fogão de duas bocas e uma geladeirinha do tipo frigobar. Comia pouco em casa. Na verdade comia pouco em qualquer lugar.
A casa de Bárbara era basicamente assim há dez anos, quando eu ainda pintava. Hoje, a casa deve estar comida pelo bolor da dispensa. Era um dos poucos quadros que achei bonito. Poderia ter vendido a casinha de tinta por uns bons reais, mas deixei que apodrecesse, havia cansado de sonhar, de brincar, de fazer de conta que era artista. Faz dez anos que não pinto, que absolutamente não pego num pincel. Faz dez anos que estou na escuridão, escondido na minha própria pele. Bêbado da solidão que encontra o homem e contorce e rasga a alma. Solidão que me força a procurar tudo por unidade. Preciso sair daqui, preciso me libertar desta jaula de lembranças que comprime minhas ações. O ponteiro faz as voltas, pra mim não existem números. São apenas figurinhas coladas no despertador como uma placa de trânsito alarmando curva fechada. Só sigo caminhos em curvas. Estradas esburacadas, remendadas de maneira feia e vagabunda. Sou só eu no mundo do meu quarto podre, que ilustra meu estado de depreciação.
Caixinhas e caixinhas vermelhas de cigarros. Caixão de fumaça. O rótulo do uísque me chamando como naquela noite na repartição:
“-Me prova! Me prova!
É a festa do rei!”
Papéis amassados, cabelos amassados. Tudo amassado! Minha cara chata, minha cama suja, minha porta descascada, meu teto infiltrado. Tudo amassado pelas merdas que cago constantemente por onde passo. Sou só. Sou só.
O que faço da vida? Como compro caixinhas vermelhas? Como pago o aluguel?
Supro desejos de algumas velhas vizinhas enrugadas. Sem prazer nenhum. Consigo dinheiro com isso. Sou doente, devo ser doente. Sobreviver comendo velhas esclerosadas, caquéticas. Gostaria de ouvir histórias da ditadura, mas elas insistem no conteúdo adulto. Sou eu o caduco necessitado! No final, acabo fingindo que foi bom. Fingimento demais vira quase uma realidade, difícil de lidar.
Uma dessas velhas taradas me botou um apelido... que, que, que... não sei dizer, me faz gemer de raiva, de ódio. Ás vezes tenho vontade de morrer. Ás vezes de matar. Se fosse matar, começaria pelas senhoras que penetro semanalmente. “Vem pra vovó meu poetinha!” Me chamar de bebezinho poeta?
Só dou tiros errados. Sempre foi assim. Sempre será.
Certo dia, quando tinha uns quatorze anos bestas, vivi o primeiro fato podre da minha vida.
Éramos quatro amigos, bombas de são João, meio litro de cachaça barata e os primeiros cigarros que fumei nessa medíocre vida. Nosso plano era libertar todos os bêbados da clínica de reabilitação pública. Contaram-me na época, que os caras sofriam e nada adiantava, voltavam pras ruas e bebiam tudo que não beberam naquela falha tentativa de largar o vício. Então resolvemos fazer algo. Saímos à meia noite de um sábado, sabíamos, por alguns informantes, que era fácil invadir o local, que contava com apenas um velho segurança e algumas enfermeiras gordas.
A clínica era na zona rural da pequena cidade que nasci. Não era longe, mas estava uma escuridão muito, muito preta. Fomos fumando e bebendo e sintetizando adrenalina. Uns vinte cinco minutos de caminhada alcoólica. Juventude transviada. Rebeldes sem causa com causa. Jovens burgueses pseudo-intelectuais.
Pulamos a grade e nos escondemos numa moita. O álcool já subia a cabeça e os outros não paravam de rir. Rir numa situação daquelas? Avistei uma vala na parede que ficava próxima a entrada do local. Corri e corri e me escondi. Fui o primeiro e o único. Os garotos, por algum motivo que nunca descobri, correram à grade e foram embora. Sim, foram embora assim, do nada. Restava eu, só, naquela solidão que agrava a mente. Nervoso, excitado, quis também voltar atrás, não podia. Corri até a porta, não havia ninguém. Por onde andava o velho guarda? As enfermeiras dormiam todas juntas num quartinho pequeno de apenas uma porta. Trancada esta porta fiquei no sossego. Era só penetrar no leito bêbado e pronto, poderia rir sozinho por ter libertado os necessitados. Entrar foi fácil..
Muitos homens roncavam num sono que parecia delicioso. Deveriam estar sonhando com suas casas, suas mulheres, suas pingas. Um deles acordou assustado, me perguntando o que um garoto fazia por ali. Respondi que estava salvando-o, que a hora era aquela. Silêncio. Ouvi lentas lágrimas e suspiros... Na ponta dos pés me aproximei do homem. “Vamos, vamos, te ajudo a sair daqui”. “Vá embora jovem. Isto aqui é a nossa casa e nossa cura”. “Estamos bem.”. Engoli salivas. “O que?”. As palavras daquele homem eram tão sinceras. “É a chance que temos de voltar a vida!” Um estalo, decepção, tudo aconteceu tão rápido e pesado que nem consigo descrever na verdade o que se passou. (se pudesse descrever... não consegui o efeito que procurava. Este trecho, sem emoção alguma, não deveria estar aqui, mas... enfim... enchimento de linguiça) Tive que sair. Corri dali até a vala novamente. Me encontrava num estado estranho. Tudo parecia um sonho mal sonhado. Foi tão rápido. Cenas de filme. Me achei um lixo, um verme, um burro. Na tentativa de correr à moita fui pego de surpresa pelo velho segurança. Delegacia, conselho tutelar. No dia seguinte era outro menino que acordava na minha cama. Minha imagem no espelho: rosto deformado pelas milhares de pancadas que levei de meu pai.
Minha imagem na mente: era só um pavor e desilusão.
Era um garoto inocente como qualquer outro. Hoje,homem, continuo a fazer besteiras de criança. O mundo conspira contra mim. Tudo que faço é errado, de ultima hora, mal feito. Se tivesse um corpo feminino ao meu lado... Corpo sábio como o de Sofia. Ah Sofia! Que a pouco me deixou. Claro! EU quase quero me deixar.
Sofia é a mulher mais incrível deste mundo. Linda, deliciosa. Muito mais inteligente que eu. Muito mais talentosa. Muito mais tudo. Sempre senti vergonha das minhas artes. Ela via tudo, analisava tudo e criticava atenciosamente. Limpava a casa, lavava minhas roupas e saia pra trabalhar, trabalho que me sustentou por longos meses. Sofia, um dia, enquanto fumávamos um, ordenou que eu arrumasse um emprego. Minha poesia e pintura? Ninguém comprava. Prometi que na manhã seguinte sairia atrás de algo. Prometi com palavras sólidas e decididas. Recebi um sorriso lindo e um olhar pela promessa que dentro de mim corria de um lado pro outro, desesperada pra desaparecer.
Acordei na manhã seguinte inspirando o delicioso cheiro daquele café de Sofia. Comemos juntos. Eu havia colocado minha melhor roupa, barba feita, cabelo penteado. Naquele dia não era mais o troglodita que sempre fui. Acompanhei aquele anjo até o ponto de ônibus. Ia ela para o trabalho de todo dia. Eu no ponto, borbulhando de não sei o que fazer, acendendo o primeiro cigarro da manhã. Andei o dia inteiro sem dizer uma palavra, sem olhar uma vitrine, sem comprar um jornalzinho sequer de empregos. Uma hora, sentado num banco de praça, mirei o chão e encontrei um papelzinho amassado que dizia:
“Venha me conhecer. Sou linda, carente e experiente. Procuro você para me seduzir, homem forte e viril. Venha! Estou na Rua Florianópolis, 142.”
(O episódio que se segue é extremamente absurdo e nojento)
Ri muito ao ler aquilo. Não sei por que, ria e ria sem parar. Como era possível? Entre risos, uma curiosidade gigantesca tomava conta de mim. “E se for uma doida carente gostosa?” “É sorte!” “Encontrei este papel por algum motivo”.
Levantei num certo desespero, num desejo intenso de saber quem era aquela mulher do papel. Corri até o endereço escrito. Era uma casa antiga, sobrado feio, esquecido. Apertei a campainha, vi mexerem as cortinas, o portão se abriu. Entrei lentamente, com certo receio e até medo. Como alguém abre um portão assim? Não havia ninguém na porta. Entrei e encostei-a. Virando o corredor, quase tive um ataque cardíaco. Num sofasão de couro, uma velha tarada clamando amor. Ó céus. Ia me afastando e ela disse “Pare!”. Prometeu-me quatro onças por uma boa trepada. Aceitei. Sem comentários para o que se passou no velho sofá.
Terminado o serviço, sai quase que correndo do lugar obscuro. Cheguei em casa. Sofia me esperava com um jantar. Dei-lhe um curto beijo e corri ao banho. Lavei-me, deixando escorrer pelo ralo o suor nostálgico da velhaca e meus pensamentos desorientados. A água caia gentilmente sobre minha cabeça quente. Parecia a mão de Sofia e seu carinho. Estava pensando no que diria a ela. O que faria se minha amada descobrisse meu pecado? Resolvi mentir. Já havia mentido tantas vezes...
Contei a Sofia que havia arrumado um emprego e que iria começar no dia seguinte. Foi festa. Foi confete. Sexo quente e contente. Deitados na cama, drogados de amor, ela acariciava meu peito peludo, abobada, feliz. Eu estava me corroendo por dentro. Senti vergonha, me arrependi. Uma súbita tristeza me invadiu e caí no sono.
Na manhã seguinte não senti o cheiro doce de café, encontrei apenas uma carta borrada no meu mudo criado:
“Te deixei. Vou embora triste, soluçando. Meu próximo passo era te pedir um filho. Um filho! Ainda te amo, mas o ódio que cresce em meu peito engolirá todas as nossas boas lembranças. Nunca me procure.
Com muito ódio
Sofia”
Anexado ao papel, um pequeno bilhete chamava atenção. Era a razão disso tudo. Fui delatado pela minha calça. A velha, a velha... havia deixado o telefone e mensagens pornográficas no bolso.
Sempre só como agora. Sempre.
Depois que Sofia partiu acabou-se tudo. Foi um soco na cara. Um daqueles socos do meu pai, que afundam o nariz na face. Minha vergonha era tamanha que não podia olhar nos espelhos da casa. Não conseguia, por mais que tentasse. Era eu inimigo de mim, travando a batalha das contradições.
Sofia é a razão do meu estado atual. Sofia. Sou um filho da puta. Um grande filho da puta.
Estou no meu mundo amassado. Pisando nas caixinhas vermelhas. Lavando suor de velha. Esse é o meu estado. E se Sofia não tivesse encontrado o bilhete? Poderíamos estar agora rolando nesta cama antes branca agora cinza. Ainda sentiria o aroma da pele e do café. O que sinto agora é fedor. Tudo exala um cheiro de enxofre que invade minhas narinas e meu cérebro. Estou tão arruinado que minhas paredes estão verdes de mofo, bolor e todas essas merdas que antes eu comia em queijos e agora me abraçam. Impossível descrever a situação em que me encontro. Já falei tanto. Mas é tão pouco. Os detalhes tomariam folhas inteiras. Minha geladeira, por exemplo:
Se é que posso chamar de geladeira essa peça quadrada de metal. Não há absolutamente nada comível nas prateleiras. Tudo está podre. Alface, cenouras, maçãs, leite... Tudo podre, vencido pelo tempo. O congelador não sabe se gela ou esquenta. Totalmente quebrado, formando sempre uma enorme poça de água no chão.
Cansei.
Cansei. Cansei. Meu limite já se foi. Preciso conversar com Deus. Preciso de Deus. Preciso... Não. Não preciso de ninguém. Tenho é que educar-me. Onde estão minhas drogas? Revirei minha carteira atrás de algo. Nada. Nada. É sempre um não, um só, um nada atrás do outro. Minha vontade agora é me drogar como na viagem de 75.
1975. Ano em que eu e mais cinco conseguimos um Fusca. Ano em que eu descobri que cogumelos eram ônibus mágicos. Íamos sempre a algum pasto procurar um guichê inteiro. Vale a pena descrever o dia em que vi os velhos que eram árvores.
(o trecho a seguir é o meu predileto)
Comíamos os fungos como se fosse salada. O barato batia tempos depois e tudo brilhava cintilante e vivo. Uma rosa não era apenas uma rosa. Era a rosa, cheia de mistérios e significados. Pétalas perfeitamente coladas, odor de mulher, fragilidade de flor. Obra de arte simples crescendo na terra. A rosa era a explicação do amor. Sofia era a rosa. A paixão era a rosa. Ás vezes um dos meus amigos era também uma rosa humana. Nova pessoa. Outra capa, outra face. Todos vestiam novas roupagens como um baile a fantasia. Uma pedra não era apenas uma pedra. Era toda uma cidade de concreto. Era a materialização de todas as nossas idéias brutas. Quando o homem se empreguiça e se rende tudo fica mais fácil de explicar. A ilusão dos fungos traz respostas imediatas as coisas que queremos resolver, prolongando a merda da realidade. Bom ou ruim? Bom. Alguns de nós já morreram mesmo. Ruim. Existe esperança na rosa brilhante.
O importante é que naquele dia, naquele pasto, naquele ônibus, ouvi muitas verdades. Talvez as verdades já estivessem dentro de mim e eu as teria antecipado. Mas foi mágico mesmo assim.
Flutuando sozinho por um bosque de mangueiras doces, seguia um caminho de vacas. As bostas eram gotas enormes do líquido viscoso das metáforas que escorriam das árvores. O tempo era lento. Sentia-me bem, um bem sinestésico. Os odores me acariciavam, os sons eram deliciosos apalpando minhas orelhas. Vi um pequeno filme de formigas. Formigas, besouros e aranhas, no mesmo ritmo que o meu tempo marcava. Sempre a sorrirem para as folhas que avistavam. Se visse um unicórnio não ficaria indignado. O estado em que meu espírito se encontrava era transcendental. Uma hora perdi minhas forças e fui ao chão. Senti como se cipós e raízes me envolvessem. Não era agressivo o processo. Era estranho apenas. Deixei-me levar pela viagem.
O susto veio quando ouvi uma voz grave. “O que faz aqui meu amigo homem?” Tentava responder, mas meus lábios tremiam. “O que fFaz aqui aaaamigo homem?” Me esforcei. Tomei forças. “Na...nada não, é só um passeio” “Não sinntaaaa MEdooooo, sssomos apenasss manngueirass Cheias” Não sabia de onde as vozes estranhas...
FhóíoH F Hih ´fOzç HF ÓH EOHFO WH F HSDLFKWHE FÓIH OIHF WIH GSD?g?wewefwEFwef?WFSF/ S/SD?fSdf?sdf?sdfwefweF/wefWEgggdfg oifj piuh g´´ohi çõhg lkshd óih óirgoih õih í y oiyíy30y[´oih ~\lkj íogiieieieiowie fhf sldkfh ~skhfói rknl\xkc´\hyr [ihw eóh ó\i gçlh oi oi ÓIH ÇJDNG ÉOIR GKNH RÕHG ÓIHY ROG
E quando a realidade veio a tona, um baque. Um alívio. Eram o rapazes escondidos nas moitas.
Se aquilo mudou minha vida? Não, mas provou que por dentro somos muito mais infinitos do que pensamos. Tudo que vi era fruto da minha própria mente entorpecida. Porque então nunca consigo criar algo extraordinário? Sempre caio na mesmice das coisas, totalmente influenciado por tudo e todos. Tudo o que faço e fiz são cópias com um temperinho a mais. É como fazer miojo cheio de coisa, cheio de queijo, de ovo, de besteirada. No fundo é só o miojo mascarado.
Sinto fome. Mas fome verdadeira. Não essa fome egoísta que a burguesia reclama. “Tô morrendo de fome” Frase chucra, maldosa. O que sentimos ( nós que possuímos condições de comer o dia todo) é somente o hábito de se empanturrar cutucando o estômago quase sempre cheio. Mas hoje sinto fome de miserável. Sinto dores, calafrios, moleza... A geladeira podre, tudo podre. Não consigo nem me levantar. Me encontro bêbado dentro de uma casca. Sinto saudades de minha mãe, Dolores Andrade de Freitas.
Dolores remete dores. Dor era o apelido de minha mãe. Dor era o que ela sentia quando desciam os punhos de meu pai em todas as partes de seu corpo magro. Mas o que doía mesmo era a indiferença do homem com todos os nossos sentimentos. Lágrimas eram crocodilos medrosos. Éramos escravos. Éramos cavalos, burros, jegues, cachorros. Mamãe nunca foi gata nem avião. Nunca fui um Filhão. Nunca tive sequer um abraço demorado de meu pai. Minha casa era qualquer lugar fora de casa. Por isso invadi clínicas, matei gatos, roubei bombas, fumei, bebi e briguei. Andar por aí enriquece os neurônios. Pelo menos pra mim. Quando digo andar, quero dizer uma grande andada repleta de análises e observações. Fotografar com os olhos os rostos dos senhores da praça, admirar como são verdes as folhas dos buchos da praça, sonhar filhos e casas, sonhar milhões de zeros na conta bancária. Queria eu ganhar na loteria. CRISTO! Milhões e milhões pra jogar fora, pra dar pra quem eu quiser. Dinheiro que eu poderia comprar o melhor uísque e charutos.
Deitado, nessa cama feia, sinto como se meu quarto navegasse pelo universo. Ao abrir portas e janelas, me depararia com um negro infinito cosmos de mistérios físicos e metafísicos. A loucura do universo é imensa. A loucura dos pensamentos que me envolvem ao olhar o céu é imensa. Enquanto escrevia este fragmento, olhava o céu... Oh céu! Será que algum deus olha pra mim lá de longe? Algum extraterrestre? Algum satélite?
Quem olha é a morte, presente em todos os cantos desse antro. A morte veste minhas calças, camisas e cuecas. Veste minhas palavras, meu cinismo, meu egoísmo. Já estou nu... minha alma morreu. Espero impacientemente a morte do meu sangue e ossos. Desejo a terra, habitada pelos bichos obscuros, um saguão num formigueiro em chamas.
O que falta na minha vida?
A vida.
(que os homens ao verem o corpo roxo, o pescoço contornado pelo nó, os papeis jogados pelo chão, corram às suas casas e abracem e beijem gentilmente seus filhos e filhas e esposas e cães.)
Mais um epitáfio...