Vagabundas não existem – o poder da porra na boca
O apartamento todo estava na penumbra, porém a luz da cozinha ainda era mantida acesa. Com o monitor apagado, o computador reproduzia a metamorfose número três de Philip Glass, enquanto o jovem coelho negro roia o fio do secador de cabelos esquecido no chão próximo ao banheiro, que com a porta entreaberta exalava um odor seco proveniente dos fungos das toalhas úmidas, há dias esquecidas dependuradas ao lado do pequeno espelho em cima da pia. Dois universos jaziam nus no sofá-cama com apenas um edredom e um travesseiro. Sem lençóis.
- Assim está melhor?
- Hmm.
O que chamamos de prazer não esta no aperto dos rabos ou das bocetas, nem mesmo nos caralhos. O prazer é viscoso como doce de leite, e quente como uma gemada num domingo de manha. A boca. A boca. A boca.
- Ahh…meu bem, eu não agüento mais…
- Hmm?
- Eu disse que não agüento mais…
- Hmm…
Olhos grudados no teto. A pedalada decisiva e ardente morro acima antes do declive. Segundos que poderiam não valer nada.
- Disse que VOU GOZAR!
- Ahm, tá bem meu amor, você fala como se isto fosse alguma coisa ruim.
As coisas existem. O bom valor que agregamos à elas nos prejudica com a sua inevitável ausência futura, e o mau valor nos alcança qualquer dia desses.
Em uma contagem regressiva de três segundos o chão fica liso. As ondas quebram produzindo uma espuma densa e determinada. Dedos infantis apertam botões compulsivamente. Martelos definitivamente enterram pregos. Balões estouram. A piada chega à risada. Socos acertam almofadas. O intestino se movimenta. O acelerador é esmagado.Vidraças são quebradas. Pés alcançam terra firme. O pão é engolido. O sorriso é retribuído. O copo é novamente cheio.
Enquanto o universo melecado se asseia, o universo ainda em repouso se depara com a seguinte questão: quantos universos já não inundaram este cosmos? Ou ainda, que diferença isto faz realmente?
A gambiarra que utilizamos para continuarmos descendo os degraus das decepções consecutivas nos sugere trocar a higiene, os hímens, e as bocas livres de esperma por nossas risadas, empatias e principalmente, calor. Calor humano e sujo. Trocar o bafo matinal e as tetas efêmeras por uma idéia, palavra da qual não me lembro bem o significado, mas cuja suma importância eu mesmo inventei. A importância é contra a vida humana, e irremediavelmente reinventada por nós todos os dias.