Um filme sobre nada

Eram seis pés. Seis pés balançando no píer, como antigamente. Aquela cena já tinha ocorrido diversas vezes, porém com conversas muito diferentes. A água era a mesma, o píer era o mesmo e os pés também. O que havia mudado realmente?

- Não, obrigado. Parei de fumar há dois anos. – recusou Leonardo.

João não deu muita importância e acendeu seu cigarro enquanto observava o pôr-do-sol no horizonte. Não parecia haver muito a ser dito. Os pescadores continuavam retirando mariscos dos barcos em volta do píer. Daniel notou algumas gaivotas disputando um peixe no ar. Parecia uma luta interminável, mas nenhuma delas empurrava a outra para o chão. Tudo acontecia no ar. Simplesmente não era uma idéia cogitada.

- E agora Leonardo, o que você pretende fazer? – perguntou João.

- Estou prestando uns concursos públicos. Como te disse, acabei me formando em algo que não gosto. Não quero mais trabalhar pra ninguém. Preciso de segurança.

João concordou lentamente com a cabeça, enquanto tragava a fumaça. Ao seu lado, Daniel arrancava uma pequena casca de ferida do tornozelo.

- E você? – retrucou Leonardo.

- Bem, você sabe. Vou me casar com a Linda. Não tenho mais tanto tempo para estas escolhas como antigamente. – disse atirando a bituca ao mar – Não quero acabar como o José Carlos, ou os gêmeos.

- Nada mal, nada mal.

Daniel permanecia calado, e agora segurava as pernas junto ao corpo. Antes, provavelmente estaria apontando o dedo nos rostos dos rapazes. Tentaria socorrê-los como uma mãe que encontra o filho perdido há anos. A ofensa seria tão inevitável quanto o enorme pesar contido agora entre eles. Não parecia haver muito a ser dito.

- Fiquei sabendo que você está escrevendo um filme, Dani. – disse Leonardo tentando puxar assunto para disfarçar seu desconforto.

Daniel não se virou para o amigo e baixou as pernas lentamente. Leonardo iria repetir a pergunta, quando finalmente obteve resposta.

- Sim. É apenas o roteiro de um curta-metragem.

- Hm, parece legal, hein? E do que se trata? – prosseguiu Leonardo, sem muito interesse.

João já conhecia o assunto e não entendia o que o irmão via demais nele. Por um dia tê-lo compreendido quando ele mesmo era mais jovem, hoje considerava as idéias de Daniel infantis e detentoras de uma inocência absurda e sem valor.

- Sobre nada. – completou Daniel puxando um cigarro do maço do irmão.

Antes de sua primeira tragada, Leonardo já olhava para João buscando empatia. Este, por sua vez, se limitou a um pequeno ruído de lamentação entre a língua e os dentes. Daniel realmente não queria mudar.

- Você gostaria de assistir um filme sobre nada?

- Receio que não, Dani. – disse Leonardo em tom paternal.

De repente, Daniel virou-se para o amigo com um sorriso cansado estampado em seu rosto.

- Vejo que você não sabe o que quer.

“Vou buscar uma cerveja”, disse João levantando-se. Estava farto daquele tipo de conversa. Tudo o que ele não precisava era de alguém dizendo o que outra pessoa queria ou não.

- Gosto de drama, e ação também. Depende do filme.

- E o que um filme precisa ter pra te chamar a atenção? – disse Daniel em tom desafiador.

- Bem, em primeiro lugar uma boa história. – respondeu Leonardo ponderando por um momento – Uma situação interessante.

- Incomum? – sugeriu Daniel.

- É, Dani. Uma característica incomum geralmente é decisiva em um bom filme, principalmente num curta-metragem.

João voltava com sua cerveja. Um vento fresco proveniente do sul já anunciava a despedida do sol, e de mais um dia. Até o fim daquele papo sua cerveja teria acabado. Linda estava em casa. Estava tudo bem.

- Ainda estão no nada? – perguntou João ironicamente.

- Você consegue imaginar a vida de um homem que nasce, cresce e morre fazendo absolutamente nada? – perguntou Daniel ignorando o irmão.

- Claro que não. Isto é impossível. Mesmo quando não estamos fazendo nada, ainda assim estamos respirando e pensando.

Havia um senhor de meia-idade pescando ao lado deles. Um balde azul. Uma grande vara de pescar vermelha se estendia por dois metros acima de sua cabeça cinzenta coberta por um pequeno chapéu branco. Assoviava uma canção popular. A velhice começa quando há a sensação de que as coisas estão acontecendo onde você não está.

- Tem razão. Mas algo incomum é aquilo que não acontece todos os dias.

- Grande conclusão, Daniel. Você é um gênio. – disse João enquanto dava tapinhas nas costas do irmão.

- É, Dani. Alguma história sobre desencontros, superação. A conquista de qualquer coisa que poucos conseguem. – João espalmava a mão para cima – não há novidade nisto.

Quem se apaixona por um momento não pode mais ser desapontado. Pode-se dizer que aquele que sonha condena a própria vida porque viver é melhor do que sonhar. Porém, quando se sonha, não se questiona ou se deseja sair.

- Hm. E o incomum na ficção seria o impossível? – disse Daniel levando dois dedos à boca.

- Sim. O teletransporte, a invisibilidade, a máquina do tempo. São temas típicos da ficção no cinema.

Daniel se sentia triste pelas pessoas que nunca iria conhecer, mal pelas que conhecia e satisfeito pelas que conheceu. Uma pessoa em sociedade não é um ser humano.

- Então, quanto mais longe da possibilidade mais interessante se torna o tema.

- É o que parece. – concordou Leonardo tomando o último gole da cerveja de João – as pessoas gostam de imaginar como seriam as coisas com estas fantasias.

O sol já havia se posto. Alguns barcos de pesca fumegavam para longe com seus motores de único pistão. Sem falar uma palavra, Daniel levantou-se e caminhou de forma tenaz para a saída do píer, tropeçando no balde azul do velho pescador. Leonardo lançou um olhar incógnito a João, que agora sorria com o fim da conversa e do dia. Antes de chegar à rua, Daniel sentiu um puxão em seu braço esquerdo, e observou as grossas sobrancelhas consternadas de Leonardo.

- O que aconteceu? – indagou ele já sem paciência.

- Você não sabe o que quer. Não há nada a ser feito.

Leonardo passou as duas mãos sobre os cabelos, como fazia sempre que ficava apreensivo diante de alguma situação que não compreendia. Em primeiro lugar, não entendia por que Daniel agia daquela forma, por que tornava as coisas mais difíceis. O que ele queria com tudo aquilo?

- Veja bem, Dani – começou Leonardo segurando o ombro do amigo – Não consigo entender por que você insiste que eu não sei o que quero. As coisas mudam, cara. A vida é assim. Temos que seguir em frente, não há como voltar.

Daniel retirou a mão do amigo de seu ombro. Tinha uma expressão completamente nova para Leonardo. Era diferente de quando ele era mais jovem. Qualquer coisa estava fria e segura em seu olhar que não conseguia discernir.

- Você concordou que quanto mais impossível é um tema, mais interessante ele é.

- Sim, Dani. E dai? Realmente, eu tô ficando preocupado com você. – disse Leonardo em tom de desistência.

- Não vejo motivos pra isso. Afinal, você mesmo concordou que é incomum e impossível alguém existir sem fazer nada. – afirmou Daniel dando as costas para o amigo de longa data.

João pedia desculpas ao pescador por Daniel ter derrubado o balde azul. Leonardo olhou para o píer, para o mar agora imerso na escuridão, para as pessoas caminhando na calçada. Não via nada demais. A mudança nunca representou uma ameaça para ele. Pelo contrário, apesar dos momentos ruins que tinha enfrentado até ali, nada significava tanto para ele. Não tinha mais nada a perder com aquele velho amigo. Decididamente, existia um fim de amizade. Por afinidade, ou pelo fim dela.

- Definitivamente, eu não sei do que você tá falando.

Daniel parou de caminhar. Virou-se para Leonardo pela última vez.

- Se é impossível e incomum viver sem fazer nada – prosseguiu sem qualquer sentimento – Então você adoraria assistir um filme sobre absolutamente nada.

Dam Barba
Enviado por Dam Barba em 16/10/2009
Código do texto: T1869906
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