COMO DAR ESMOLA A MILIONÁRIO

Há quem se lembre dele, Heitor.

Pedante, gabola, divertido e tagarela, gostava de falar da vida dos ricos, que dizia conhecer todos em Araçatuba.

Escolhia bem a seleção dos amigos próximos, com muita predileção pelos afortunados do dinheiro.

Seu primeiro lema era "escolha os ricos e se dê bem".

Com os pobres, como eu, era atento; não gastava um centavo.

Não investia onde não houvesse retorno.

De onde decorre o seu segundo preceito: "toma lá, dá cá".

Esse caráter proporcionava aos amigos muitas oportunidades para fazer-lhe brincadeiras e gozações.

Um dia estávamos a beber algo num bar de sucos e vitaminas na Rua Oswaldo Cruz.

Ao final levantei-me fingindo compromisso urgente e disse-lhe apressado:

_____ Pague a conta, depois a gente acerta ...

Maldade terrível a ele, que não pagava nada a ninguém.

No dia seguinte, logo pela manhã, apareceu na república de estudante, na Rua Major Mendonça:

_____ Deve-me duas merrecas !

Respondi só para aborrece-lo:

_____ Agora não tenho, pago-lhe mais tarde ...

Poderia ter pago, mas preferi piscar para os amigos e comunicar a zombaria.

Brincadeira fatal, no entanto.

À tarde ele morreu.

Mal súbito, segundo os médicos; para mim, aflição!

Encasquetei que ele não descansaria enquanto não tivesse o seu dinheiro de volta.

Na sexta, na missa dos mortos, no prédio da matriz católica ainda em construção, surgiu a oportunidade.

Quando passou a sacola de esmolas, separei duas cédulas e coloquei-as no saco, pensando comigo: "o suco tá pago!".

Ledo engano, pois imediatamente pareceu-me ver o rosto do morto entre a multidão de fiéis, fazendo-me caretas, contrariado.

Pagar "aos pobres" não se aplicava ao defunto, que sempre tivera horror a doação sem retorno.

Ele não daria um centavo sem que depois pudesse tirar alguma vantagem.

Nesse caso eu teria que dar aos ricos.

Mas doar aos afortunados não é simples.

Passei noites insones, cochilava com pesadelos e imaginava o defunto de mãos estendidas para mim, a cobrar o débito.

Para piorar eu teria que reaver o dinheiro dado na primeira oportunidade, aos pobres.

Caso contrário a dívida seria considerada paga à pessoa errada.

Na missa de domingo, sentei-me perto porta.

Aguardei o ofertório.

Quando o acólito aproximou-se, coloquei a mão dentro da sacola e apoderei-me às cegas de algumas notas.

Corri a mais não poder, ouvindo boa parte dos fiéis da igreja gritar:

_____ O pilantra roubou esmolas!

Com o dinheiro recuperado, agora eu teria dar à alguém rico.

Na fuga tomei direção da Rua Tiradentes, dobrei à esquerda na Rua Glicério e caminhei no sentido da Rua Quinze de Novembro

.

De súbito, estava em frente ao palacete construído por Tião Maia, como sua residência em Araçatuba.

E ao meu alcance, estava o mitológico milionário, dono de setecentos e setenta mil cabeças de boi, em fazendas que perfaziam um milhão de hectare na Austrália e empreendedor imobiliário em Las Vegas, onde era comum ser visto num Rolls Royce, vestido de boiadeiro e na companhia de belas mulheres.

Seu motorista abria-lhe a porta de um Landau negro.

Era a oportunidade.

Aproximei-me e estendi-lhe a mão fechada.

Ele correspondeu ao gesto, imaginando um cumprimento.

Depositei em sua mão as cédulas amarrotadas que tirei na igreja.

Disse-lhe:

____ É da parte do Heitor.

Não deve ter compreendido.

Mas também não jogou o dinheiro fora.

Afinal não se fica milionário sendo mão aberta.

Pirulitei-me rapidamente.

Olhei para trás ao dobrar a esquina e tenho a certeza de ter visto o defunto eufórico, aos pulos e as piruetas, e depois com o braço no ombro do milionário ao entrar com ele na mansão.

Pago o débito, restava restabelecer a ordem das coisas.

Retornei à missa.

Para devolver o que levara.

Receoso, imaginei o acólito a dar-me uma surra na igreja lotada.

Novamente enganei-me !

Ao reconhecer-me, o homem da sacola tomou brios na defesa do patrimônio santo.

Fez sinal ao padre para que interrompesse a missa.

Retomou a posse da sacola.

Encaminhou-se até mim.

Estancou.

Depois cutucou-me com o saco dos pobres, preso numa argola de metal e em voz alta na catedral silenciosa ordenou-me autoritário:

_____ Devolve o que levou... seu ladrão de igreja !

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Araçatuba-SP, março de 2002

Obrigado pela leitura.

Samuel Sajob