Do Medo
A Vida havia lhe presenteado com olhos e ela, desde o princípio, gostou demais do presente. Com eles, ela explorava e descobria coisas fascinantes. Via milagres, luzes, cores por toda parte. Seus olhos eram vivos - e ela cuidava deles com muito carinho. Em troca, eles mostravam a ela muitas maravilhas: vento, sol, flor, estrela, e todos os prodígios que as coisas do mundo podiam fazer. E quanto mais ela via, mais ela queria ver. Seus olhos incansáveis mostravam então cada vez mais. O mundo e além do mundo. Ela se alegrava e seus olhos ficavam felizes: gostavam de vê-la sorrir. Não se separavam nunca, ela e seus olhos, confiando e cuidando um do outro.
Um dia, enquanto exploravam juntos as raízes (os olhos mostravam a ela que havia vida circulando debaixo da terra) encontraram um baú. Os olhos rapidamente exploraram aquele objeto estranho e escuro. Não gostaram; o baú tinha jeito de mudança. Sertá que queriam mudanças, e mudanças que estavam debaixo da terra? Quiseram discutir o assunto com ela, mas ela sorria curiosa. E eles gostavam de vê-la sorrir. Ela foi abrindo o baú sem nem pensar a respeito, e foi naquele momento que a coisa começou a acontecer.
Os olhos se esforçaram para ver o que havia ali. Uma forte luz impedia que eles vissem. Ela insistiu, descontrolada, pediu que se esforçassem mais. Os olhos tentaram com todas as forças, até desfalecerem. A última coisa que ela se lembra é de ter ouvido um estalo - como se algo se rompesse - antes de ser lançada na escuridão.
Ela ficou sentada lá, chamando pelo companheiro que a Vida lhe dera de presente. Mas não ouvia respostas. Sem eles, ela não via nada. Sentiu-se sozinha naquele vazio, e durante algum tempo esperou que seus olhos viessem em seu socorro. Começou a desconfiar que havia perdido seu presente.
A partir daquele dia ela permaneceu imóvel. Não ia a lugar algum. Forçara seus queridos olhos e agora estava sem eles, na escuridão. Sem saber onde estava. Sem ver as maravilhas do mundo. Começou a achar que aquilo era um castigo. Porque ela, curiosa, havia visto demais com os olhos que a Vida lhe deu. Porque viu o mundo, e além do mundo. Decidiu que permaneceria ali mesmo, onde estava. Fazendo só as coisas que conhecia. Ali era seguro, e ela poderia permanecer sem os olhos.
Assim foi que ela se acostumou a viver sem enxergar, sempre no mesmo lugar, sem explorar mais o mundo.
A Vida lhe presenteara com ouvidos, boca, nariz, pés e mãos, coração e pele, e olhos muito especiais que enxergavam até mesmo na escuridão. E ninguém, nem mesmo a Vida, jamais entendeu por que ela, um dia, resolveu fechar os olhos e nunca mais os abrir.