Carapaça Dura
1
Vejo por uma fresta.
Só o que ouço é o zumbir de meus ouvidos.
Estou dentro de um cobertor, quente, fervendo. Ele é escuro para captar mais calor. Ele está debaixo do sol.
Comigo dentro.
O Sol da uma hora.
Primeiro meus poros se dilatam, e eu suo em torrentes.
Meu corpo tenta regular minha temperatura interna.
Ele expulsa todo o líquido corporal disponível.
E depois, o não disponível.
Quando todo o líquido é expulso de nosso organismo, começamos a transpirar sangue.
É o que chamam de cobertor turco.
Há algumas horas desisti de chamar por socorro, e percebo que preciso poupar energias ou irei ficar inconsciente.
São nestes cobertores que eles colocam quem leu demais o Manifesto Comunista de Marx e Engels.
Depois, ao perceberem que estou a ponto de sucumbir, e que não direi nada, me levam de volta à minha cela. Estou nesta cela há três semanas.
Compartilho ela com alguns ratos e uma barata que não me parece muito bem.
A luz do corredor ilumina minha cela com uma claridade opaca, mal posso ver o que há dentro dela, mas posso ver a barata, de carapaça para baixo, e movendo as antenas, e os ratos andando em sua direção.
Jogo pedras e o que consigo com minha mão, espantando alguns ratos.
É incrível o tipo de afeição que se desenvolvem em ocasiões de isolamento extremo.
Matilde – eu chamo a barata de Matilde depois do décimo dia.
No décimo sétimo dia Matilde parece particularmente parada. Nesse dia começo a conversar com ela, que ainda mantém suas antenas em movimentos lentos.
Me lembro das reúniões que faziamos escondidos de nossos pais professores. Estávamos no colégio, e foi por engano, quando vimos muitos que iriam ser jogados fora, todos de capa vermelha, e todos a mesma cópia do mesmo livro. Quase uma dezena deles.
E naqueles dias, lê-lo era semelhante a ler Aleister Crowley.
Era ler algo escrito pelo diabo vermelho.
Mas o que melhor para jovens do que algo misterioso e proíbido. Quer dizer, há algo que instiga mais a mente do que o que não querem que vejamos?
Existe algo mais tentador que o pecado?
Por isso Adão provou da maça.
Por isso liamos Marx.
Passamos a nos encontrar de tarde, digo a Matilde, escondidos liamos a idéia daquele manifesto, e começavamos a ficar revoltados com o mundo. Mas que jovem não fica? Acho que o pior problema em nossa revolta era uma coisa chamada DOPS.
Ter alguém constantemente te vijiando acaba acarretando que uma hora ele irá te pegar.
E eu não vejo meus amigos há três semanas.
Eu não vejo ninguém há três semanas.
Minhas costelas doem, Matilde.
Matilde parece dolorida também, nesse momento tudo é reciproco, tudo em nossa curta relação. Mas sei que ela me ama, tanto quanto a amo neste momento.
Eu tinha uma família, uma casa, eu digo, mas eu não conseguia ficar naquele conforto sabendo que outros não tinham nem o que comer, você me compreende, Matilde, seique você já deve ter passado por poucas e boas.
2
Sem perceber eu durmo.
Eu acho que é o décimo oitavo dia, mas agora não tenho mais noção do tempo. Quando a ampulheta é girada muitas vezes e você para de contar por distração, não dá mais pra adivinhar, mas temos uma aproximação.
Uma estimativa.
Sabe, Matilde, a primeira vez que eles nos pegaram, eu e meus dois amigos, nos perguntaram o que estavamos lendo. Ao perceber o título, sob acusação de subverção, eles colocarão capuzes pretos em todos nós, e nos separarão, depois eu não tornei mais a ver o Marcelo nem o Gilson.
No primeiro dia eles me levaram uma sala com pouca luz, luz amarela, corrosiva, sódica, pustulenta, lenta.
Estava atado a uma cadeira, e eles me perguntaram onde era a sede. Onde era nossa sede comunista. O que eles queriam saber era onde imprimiamos nossos panfletos, aqueles que distribuíamos à noite, tentando repassar a mensagem que achavámos válida. Que achavámos que o povo deveria ouvir.
Amarrado na cadeira eu digo que não existe sede.
Com um jornal molhado eles batem no meu rosto. Tapas, socos. Eu sangro e choramingo que não sei. Digo isso, porque sei que meus camaradas também não saberiam, mesmo sabendo.
Era um pacto.
Um pacto idealista. Mesmo que utópico.
E disse a eles: “Vocês comem o mesmo que uma cidade da Nigéria num dia só. Com o que vocês comem todos lá poderiam...”, e eles me socam no nariz e eu engasgo em meu próprio sangue. Socam até quebrá-lo, mandando eu ir me foder.
No outro dia, é uma sala nos fundos de seja onde quer que eu esteja. Há uma espécie de banheira imunda, cheia de água com gelo.
Eles me deitam de costas, e me afundam, segurando meu peito para que eu não consiga emergir.
Quando percebem que eu quase me afogo, que minhas mãos estão quase sem movimento, me puxam de volta pela gola dos trapos que estou vestindo.
– Onde é o QG de vocês?
E tentam me afogar por horas, até que eu desmaio, e então me levam até a cela com as ratazanas e com você, Matilde.
Afogamento simulado, é como chamam. Mas por alguns segundos a mais, não seria apenas um ensaio.
Então, por dias eles me trancam em uma outra sala, eu chama de ala da demência. Imagino que seja perto das salas de tortura, porque ouço gritos dia e noite.
Eles mandam refeições que tem cheiro azedo por uma fresta na porta.
Tudo é escuro nesta sala. Eu não vejo o que é, mas como com gula e com as mãos sujas do chão imundo em que estou sentado. Aqui, creio que comecei a contar os dias errados por não ver mais o sol.
Nos dias que fiquei lá, senti uma grande saudade de você, Matilde.
Ela parece estar ainda mais cansada, para de mexer as antenas, e quando torna, é de forma débil, triste. Mas com uma força que eu admiro, ela ainda mexe as patas dianteiras. Tentando se virar.
Eu quero ajudar Matilde, mas vejo que sua carapaça está entreaberta, e seu fluído corpóreo está grudado no chão. Temo que se tentar colocá-la numa posição mais confortável posso fazer ela sofrer mais.
Por instantes eu apenas olho ela, pensando se ela também perdeu sua família. E com isso lembro de meus pais.
Meus pais nunca foram a favor de um filho pacifísta, mesmo não sabendo o significado da palavra. Mas, para eles, tal palavra estava intrinsecamente associada com a palavra comunista. E o que eles ouviam dos militares sobre os comunistas eu não sei, mas em certa ocasião, no último natal, meu pai disse a seu compadre:
– Antes um filho bicha do que comunista!
E o seu compadre disse:
– Os dois são coisa do diabo, meu pastor disse.
3
Isso foi no décimo nono dia.
Eu acho.
Me arrancam da cela, enquanto eu conversava com Matild sobre como uma sociedade igualitária seria ideal para acabar com os problemas do mundo.
A sala desta vez era mais clara.
Mas ainda assim, tinha um teor estranho no ar que não saberia descrever.
– Tire suas roupas! – ordena um dos torturadores.
Eu não resisto por causa do cansaço.
Arranco tudo e atiro ao chão. Afinal o que me separada da nudez eram trapos que logo iriam se dissolver por conta própria. Me dispo de tudo, mas no fundo, presa e bem agarrada ainda resiste minha dignidade.
Vários homens me seguram e me curvam numa posição que faz com que minha bunda fique levantada.
Outro homem chega com uma forma daquelas de fazer gelo, porém é maior e o seu conteúdo não é cúbico, são cilindrícos.
Ele retira alguns da forma de gelo, e começa a injetar no meu reto.
Não sei descrever a dor, mas sensação é a de estar cagando ao contrário. Seu cu fica gelado, e queima como o gelo queima pele, mas o ânus é um lugar muito mais sensível.
Eles questionam até que o gelo derrete.
Supositório de gelo, é como eles chamam.
Outro, eles injetam outro supositório no meu cu.
E depois outro.
E eu continuo dizendo que não sei onde é o maldito lugar, que o tal lugar não existe.
Digo que eles pegaram o cara errado, e eles riem, imagino que pela quantidade de desculpas similares que devem ter ouvido.
Injetam até que após muitas queimaduras de gelo meu ânus começa a sangrar devido às feridas que causou no tecido, como se eu estivesse com uma hemorróida exposta.
E eles me levam de volta para a cela.
Isso foi dois dias antes do cobertor turco.
4
Dois dias depois do cobertor turco eles me tiram da cela novamente. Mas dessa vez, dizem que irão usar o pau-de-arara. E eu começo a chorar só de imaginar, por todos os relatos que já ouvi.
Ele consiste basicamente em amarrar o preso há uns vinte centímetros do chão, prendendo os punhos, numa série de choques e afogamentos. Uma série de todas as torturas, fisíca, psicológica. E a pior de todas, ideológica.
Querem destruir minha mente.
O ano em que isso ocorreu foi 1985. Quando de repente, tudo acaba. Mas antes de eu ser solto, quase morto, eu volto para cela.
E não choro porque tudo vai acabar.
Choro porque Matilde, exausta, não mexe mais as antenas. Nem as patas.
Matilde morreu.
E mesmo eu sendo livre.
Mesmo voltando para casa, quando Matilde morreu, um pedaço de mim ficou para sempre morto.
A ditadura foi uma tentativa frustrada de matar nossos pensamentos e alienar nossa mente.
Dizem que apenas pedras podem nos ferir, mas palavras dilaceram muito mais. Eu venci no final, porque agora posso fazer o que eu quiser, agora eu tenho um nome de novo.
Agora sou Luis Garras novamente.
Mas queria que Matilde tivesse sobrevivido também.
Vou me encontrar com Ana, minha filha récem nascida.
E eles acharam que iam me destruir, mas eu destruí eles com minhas palavras, e com sua própria estupidez, pois eles tentaram me ferir com pedras.
O ditado está errado.
O correto seria: “Pedras podem me ferir, mas palavras ferem muito mais.”
E minhas idéias estão intocadas por eles.
E imagino que até hoje eles ouvem tudo o que dissemos.
Os machucados que eles nos causaram há muito já cicatrizou.
Mas nossas palavras jamais saíram de suas mentes.
Essa é a nossa revolução, e a nossa tortura.