Feliz Natal
Obs.: Esse conto é um epílogo do conto "Estirpe Ruim"
Eu sempre fico assim nessa época do ano.
Eles começam a colocar as luzes, enfeites e cortas as árvores. E eu começo a me sentir melancólico. Acho que não tive os melhores natais.
Morei grande parte de minha vida em uma fazenda. Mas nos natais minha mãe levava eu e meu irmão à cidade – para vermos as luzes –, agora, quase dez anos depois eu estou na cidade. Parece que todos estão na cidade. Mas são lembranças de quando eu ainda morava no campo que me fazem ficar assim.
Nosso primeiro natal na cidade.
Mamãe nos abraça e nos dá dez cruzados a cada um e nos solta no centro da cidade. Nunca soube o porque ela fazia isso, ficando longe de nós, nesse dia que ela diz ser tão importante.
Eu digo ao meu irmão que quero ir ver a casa do Papai Noel. Ele ri de mim e diz que isso é babaquice, me dá um tapa na cabeça e sai andando. Só ele conhece a cidade.
Saio atrás dele, segurando o choro. Tenho medo de dizer qualquer coisa para ele.
Éder é muito estourado, e ele estragou todos os meus natais.
Hoje estou com uma bela mulher.
Uma mulher que gosta do natal. Que quer comemorar ele. Comemorar comigo.
Se fosse outra pessoa, eu desistiria. Mas eu amo essa mulher. Quero ela para mim.
Mas ao olhar para aquela árvore, aquele verde falso, opaco e escuro do plástico, cheio de bolas vermelhas e amarelas e luzes e falsas esperanças – não posso evitar me sentir um idiota, mas aquela esperença às vezes volta, a mesma que me assaltava nos primeiros natais.
– Que bela árvore, Ned! – ela me diz, sorrindo, fazendo meu coração palpitar veloz e minhas mãos tremularem, envoltas em uma taça de vinho.
– Sei que você gosta... – eu digo, tentando sorrir, mas não consigo seguir seu entusiasmo. Mas ela está aérea com as luzes e o brilho e não percebe meu descontentamento com esse dia em especial.
Nos olhos dela, eu vejo aquele lago, onde haviam patos nadando.
Não havia neve, como eu imaginava.
Ninguém patinava no gelo.
Mas haviam as luzes, e isso, naquela época bastava.
Acho que o que deixa o dia de natal com todo esse poder é porque todos estamos sonhando juntos, na mesma hora, com os mesmos ideais para o próximo ano, provavelmente.
Se ninguém estiver junto, terá o natal algum sentido ou valor?
Acho que é a solidão que nos fazer criar feriados de reúnião.
Ação de graças, páscoa, dia dos pais, das mães – natal. Somos animais desesperados pelo próximo, mesmo odiando eles, precisamos; e isso nos deixa ainda mais putos.
Naquela época eu precisava de luzes, mas do que sinto falta hoje são dos vaga-lumes. Haviam luzes no céu todos os dias, mas eu não sabia ver ao meu redor, e hoje me arrependo de não ter olhado as estrelas.
Mas agora olho para outra. A mais brilhante que já encontrei. Teresa. A mulher de olhos cinzentos. Seu sorriso tem toda a via láctea.
Foi em 1988 que meu irmão estragou para valer meus natais. Eu tinha oito anos naquela época. Não era a primeira vez que eu pedia a Éder para me levar para ver o Noel, mas para minha surpresa, desta vez ele disse que me levaria.
Enquanto ele me puxava pela manga da minha velha camiseta, meus olhos brilhavam, maravilhados. Eu trazia secretamente uma carta no meu bolso – trouxe ela todas as outras vezes, todos os outros natais. Talvez eu possa entregá-la desta vez, penso eu, e talvez ele leia. Eu fui um bom garoto. Tirei boas notas.
– Você está feliz? – me pergunta Teresa, me afastando destas memórias nubladas.
– Ah! Estou bem – respondo, com um tom débil que faz eu me sentir o maior idiota vivo na virada do milênio.
Teresa sorri.
– Não, bobo. Feliz! Você está feliz? – diz aquela voz que me encobre como uma onda morna.
– Oh, sim, estou! – tento simular um pouco de entusiasmo. – Eu só estava... pensando... sabe?
– No que?
– É só que...
– Tudo bem, Ned, não precisa contar se não quiser.
– Não, eu quero! É só que... o natal às vezes me deprime – tento dizer da forma mais amena possível, mas Teresa não disfarça o choque.
Ela deve ser religiosa.
– Como você pode ficar assim hoje? – diz ela, franzendo o cenho, cada palavra como gilete, me cortando.
Eu acho que são as pessoas que nós mais queremos agradar que conseguimos decepcionar com maior facilidade.
– Acho... acho que foram coisas que aconteceram antes – eu tento explicar, não minto, mas tento me esquivar de uma resposta direta.
Embora eu sei que não ser franco com a mulher que amo, minha estrela, minha única estrela, não seja algo bom, sinto que esta é uma regra do relacionamento. Ser totalmente honesto pode às vezes acabar com a frágil estrutura que todos os relacionamentos tem – se o que temos é um relacionamento afinal.
Me parece uma cruel ironia ter de contar sutilmente algumas coisas para as pessoas que mais amamos, mas podermos ser totalmente honestos com nossos inimigos.
Olho para Teresa.
Seus olhos me observam, ou talvez apenas perscrutam o tremular da luz de velas que acendi para nosso jantar.
– Antes? – ela indaga, sem aparentemente compreender o que seria o tal antes.
Então eu conto tudo sobre minha vida na fazenda. Sobre o cola-cola. E conto sobre aquila vez que Éder me levou para ver o Noel.
Ele me puxa pela camiseta. A cidade está brilhante com as luzes – não tanto como é hoje, mas naquela época parecia que os poucos pisca-piscas tinham um brilho mais cintilante – começo a contar para ela, agora franco integralmente. Coloco vinho para nós, e torno a me sentar. – Então estamos eu e Éder na fila para ver o Papai Noel. Eu com a carta, escrita com caligrafia tortuosa e ortografia de um garoto de oito anos – estava escrito: “Querido Papai Noel...” – eu conto a ela, e Teresa ri, incerta se deveria ter rido ou não. Mas eu encorajo e sorrio. – Nunca escrevi bem, eu confidencio.
Estou com esperanças de que o Noel lerá ela com atenção. Na época, para mim, era uma carta muito importante. – uma pausa. – Bebemos vinho, e eu olho para ela carinhosamente, recebendo um olhar que denota afeto e encorajamento, então eu prossigo.
Quando chego próximo ao Papai Noel na fila, Éder salta e arranca a barba dele. E eu e Teresa rimos. – Quer dizer, isso não é importante, não deveria ser, mas era tudo que eu tinha de esperança quando descobri que minha mãe tinha cancêr.
– Oh, Ned... sinto muito! – diz Teresa. Ela coloca a mão em frente ao rosto, me olha com uma irritante piedade.
– Não, Teresa. Já faz tanto tempo. Mas até hoje não consigo lidar bem com esse dia.
– Deve ter sido uma época difícil – comenta ela. Sinto que ela quer simplesmente quebrar o silêncio incomôdo, para não ouvir o que aconteceu ou os detalhes.
– Sim, mas... – eu começo a dizer, mas alguém bate na porta. – Só um minuto.
Lá fora há um agente do correio, ele segura um envelope envolto em plástico preto. Pede que eu assine e então me entrega o embrulho.
– O que é? – pergunta Teresa quando entro com o pequeno pacote.
– Estranho – eu digo, arqueando a sombrancelha.
– O que?
– É da prefeitura.
Então eu abro.
Em letras em negrito as palavras “Atestado de Óbito” se destacam. Meus olhos procuram o nome e leio: Éder Silva.
– O qu foi, Ned?
– Meu... Éder. Ele morreu – eu digo.
Ela me aperta com força em um abraço e diz que sente muito.
– Não sinta. Não vale a pena.
Por um momento ficamos em silêncio, mas depois eu consigo abrir um sorriso.
– Vamos sair daqui?
Ela faz que sim com acenando a cabeça.
Nós passeamos pela rua iluminada, passeamos a noite inteira, e a mais bela estrela ao meu lado.
Eu tenho um anel em meu bolso.
Mas não sei se ela irá aceitar.
Porém, eu aprendi com os outros natais que certas coisas são melhores quando não temos certeza – e de certa forma o natal é como o amor: é necessário sonhar junto para ter qualquer sentido.
Olho para as estrelas e pergunto se Teresa que ser casar comigo.