Cesta de Morangos
1
Eu vou parar, digo para mim mesmo.
É sempre igual. Pararei todos os dias.
É sempre o último.
Sabe o que é legal de conversar com você? Você está parando como eu. Sempre é o último.
Ah, eu nunca mais farei isso.
A gente fala isso, né?
Eu disse isso sobre cigarros.
Disse sobre as drogas.
Mas aqui estou eu, acendendo um cigarro, na internet procurando o que não existe. Conversando com você, porque todo o resto da festa foi embora.
É solitário né?
Fim de festa.
Por isso que a maioria das pessoas vão para casa com suas famílias, debaixo dos cobertores, onde acham que estão seguros do bicho-papão. Da segunda-feira.
Mas eu não tenho aonde ir.
Por isso é tão bom estar aqui conversando com você.
Sabe, eu sempre quis dizer isso para alguém. Mas nunca tive muita coragem. Mas, aqui, olhando para você, me senti a vontade.
Sente-se, ou sei lá, fique de pé. O importante é você estar aqui.
Tem algumas porcarias na geladeira, e se quiser um cigarro, tem uns aqui. Acho que dá até o fim da nossa conversa. Não vou te prender muito porque sei que você, diferente de mim, tem uma casa, uma família que se preocupa com você. Tem seus programas de TV, tem suas coisas para estudar e aprender. Estou bêbado, mas não sou egoísta.
2
Acho que tudo começou quando Ana foi embora.
Eu amava ela, eu acho.
Quer dizer, eu precisava dela. Não tinha mais ninguém.
Não sei mais a diferença de amor e dependência.
Sabe, quando a gente vê aquela guria saindo do bar à noite. Tem dezenas de pessoas falando bobagem ao seu redor, mas de alguma forma, sabe-se lá como funciona o cérebro, é só ela que está ali, como se fosse uma alucinação só sua. Ou como se Krishna tivesse colocado ela no seu caminho, como se suas almas fossem de outras vidas, quando vocês dois foram animais e copularam.
Sou noturno sabe.
De noite penso demais, acho que falo muita besteira, já é tarde, desculpa por estar prendendo você aqui, mas assim que parar de chover eu te levo para casa, tá?
Então, foi assim que eu me senti com Ana, da primeira até a ultima vez que a vi. E pensando bem, quando foi a ultima vez que eu a vi?
Quando ela estava com aquele vestido listrado.
Não, não. Isso foi no mês passado. Eu vi ela semana passada. Isso. Semana passada Ana passou por mim de mãos dadas com um outro cara. Sabe, o que doeu não foi o cara, foi ela nem ao menos ter olhado para mim.
Num dia uma pessoa é o centro do seu mundo, e no outro, ela nem ao menos estende as mãos para dizer uma droga de “oi”.
Sei lá, talvez eu esteja fazendo você perder seu tempo. Não sei se devia ficar te enchendo com essas besteiras da minha vida. Mas só tenho você, amigo. Espero mesmo que não esteja te incomodando.
Quer dizer, eu não senti raiva dela, nem nada do tipo por casa do namorado novo dela, do jeito que eu te falei parece ciúme. Mas eu senti raiva foi do guri porque ele não viu os sinais. Sabe, nas ultimas semanas que estive com ela, Ana um tanto diferente. Mas ela não me dizia o porque. Eu perguntei, mas o namorado dela parece que ignorou isso também. Por isso que a culpa é dele. Não minha.
Eu quero matar ele.
Ah, desculpa. Eu não devia ter dito isso. Acho que pensei alto demais. Não é literal essa coisa de eu querer matar o cara.
Eu não fui ver ela ainda.
Ela está na Santa Casa nesse exato momento fazendo uma série de exâmes.
Caroços.
Os médicos encontraram caroços nos seios dela.
Foi a irmã dela que me telefonou.
Não sei por quanto tempo ela estava vendo esse outro cara, mas ele tinha que ter notado isso. Ela devia estar palida, ou algo assim, sabe. Devia estar com olheiras ou alguma coisa que denunciasse. Ele precisava ter levado ela a uma médido porra!
Ah, desculpe eu me alterar, mas fico fora do sério quando penso naquele cara. Deve ser essa merda de cerveja!
Certo, a chuva está parando.
Quer que eu te leve? Vamos lá para baixo que eu te acompanho.
Já se sentiu assim por alguém?
Não precisa por o cinto se não quiser, essas porcarias não funcionam mesmo se a gente bater o carro. Eu nunca ponho, sabe, e nunca fui multado. É furada.
Mas como eu dizia, agora ela está no hospital, e eu não sei se devia ir visitar ela. Quer dizer, eu quero. Mas tudo ficou tão estranho depois daquela ultima noite, que me pego pensando se ela ficaria melhor ao me ver. Ou o contrario.
3
Quais eram mesmo as flores?
Azaléias ou orquídeas?
Que droga, eu nunca prestei atenção nestes detalhes, e agora que preciso comprar uma flor não me lembro nem ao menos da que ela gostava.
Seriam margaridas?
Digo ao moço que quero um ramalhete de cada. Por precaução.
Não sei porque minhas mãos estão geladas.
Será que o outro cara vai estar lá?
Ah, que se foda o outro cara, estou indo ver uma amiga, e ele não tem nada haver com isso. Quer dizer, há quantos anos conheço a Ana, e há quanto tempo ele conhece ela?
Tenho mais direito que ele.
Na recepção pergunto por Ana Garras, e a mulher de branco me informa que ela pediu para não receber ninguém.
Eu pergunto qual médido que está atendendo Ana.
Julio. Dr. Julio Fujitaka. Mastologista.
Eu perambulo pelos corredores e vejo mais doentes ali que já havia presenciado em toda a minha vida. O que está ocorrendo com o mundo, temos a cura da maioria das doenças, mas os doentes apenas aumentam.
Quando acho a porta da sala onde os médicos vem tomar café, bato, e quem abre é um senhor japonês de uns sessenta anos, careca e com óculos de lentes grossas, opacas. Com um sotaque carregado ele diz:
– Que posso ajudar?
– Eu sou o namo... amigo de Ana Garras, gostaria de saber como está a situação dela.
– É sigilosa essa informação. Procedimentos legais – Dr. Fujitaka me informa, como se a situação de Ana fosse segredo de Estado. Mas que droga, estão segregando a situação da única pessoa que é importante para mim nessa droga de vida. – Só família pode receber.
– Obrigado – eu digo e saio.
Ando olhando por todas portas, pelo pequeno visor de vidro fosco na altura dos olhos, e procuro por Ana.
Preciso falar com ela.
Quando encontro seu quarto, entro, quando ninguém está olhando.
– Como vai? – eu pergunto. Ela tem os olhos injetados e está com os cabelos ralos.
– Bem, eu acho. As dores pararam – ela me diz com uma sinceridade que dói.
– Pra você – dou o ramalhete de azaléias, margaridas e orquídeas.
Ela me olha torto e diz que é alérgica, e que gosta são de rosas.
– Senti sua falta – tento dizer, mas o tom de minha voz denúncia uma certa amargura.
– Às vezes eu também sentia a sua.
Ana já está sem sombrancelhas, e sua palidez acusa que não anda comendo nada. Ou vomita tudo que ingeri.
Ela não gesticula.
É nisso que me concentro.
Ela deve estar muito cansada.
Depois de uma longa pausa digo que não sei porque ela me abandonou, porque?
– Você não iria querer saber.
– Mas é claro que quero, penso nisso todo o dia, o dia todo. Me remoo, imaginando o que fiz de errado pra te magoar.
– Você não fez nada.
– Então, porque?
– Quer mesmo saber?
Eu olho aflito. Por um segundo que parece um minuto cruel eu fico sem voz.
Sim, eu digo.
Peço, quase implorando.
Ana me olha como que com pena e diz:
– Você não existia há tempos pra mim. Eu te procurava de manhã e te encontrava atrás dos jornais. Não tinha um único dia que você não olhava aquela maldita bolsa. Você ia pra faculdade de manhã, e durante a tarde ficava trabalhando em casa, não imagino no que. Você nunca estava lá.
Mas...
– Não! – protesta ela. – Agora me deixe terminar.
Eu fico mudo.
– Você ficava grudado na TV quando estava livre. Você nunca percebeu que nunca esteve ao meu lado? Você não precisava de mim, mas eu precisava de você. Você não ia para o campo comigo, não sabia ver o que eu via, e eu me sentia sufocada naquela droga de cidade. Nesta Cidade-Canção muda. Eu queria sair, será que você não podia entender? Sua visão se limitava à sua casa, ao seu carro. Eu queria ver o resto do mundo que estava o meu redor. Por isso te deixei quando soube que estava morrendo. Você estava me fazendo perder meus ultimos dias. Você nunca me amou, você amava a idéia romantica de estar casado com alguém. Nunca fomos um casal de verdade.
Eu era um merda.
Parece tão óbvio agora, mas eu não havia me dado conta.
Deve soar superficial falando isso, mas dentro de mim eu me lembrava de todos os momentos onde Ana estava presente em minha vida, e eu joguei eles fora. Eu joguei minha vida fora.
Depois de quase cinco minutos mudo, chorando, eu digo:
– Amanhã vou lhe trazer um presente, é pra agradecer por um dia você ter estado comigo.
– Não precisa, mesmo.
– Não, eu venho!
4
E o amanhã se estendeu por quase uma semana por causa do trabalho, faculdade, e de uma rotina que eu odeio, que mal me deixa pensar.
Mas então finalmente tenho um dia e compro uma cesta cheia de morangos. A fruta favorita de Ana.
Mas não a compro por esse motivo, mas pelo que ela representa.
Eu lembrei.
Lembrar é importante.
Quando chego ao hospital o Dr. Fujitaka diz que Ana morreu há um dia.
Eles encontraram mais tumores.
Estava em estágio muito avançado, há anos talvez.
Um no lóbulo esquerdo.
Ana não suportou a operação.
Catatônia define o que sinto.
No nosso mundo nossa família não morre. Somente a dos coadiuvantes, nunca a nossa, a protagonista da série de eventos ilógicos que chamamos de vida.
Tudo que fica em minha mente parece uma foto: eu por horas sentado no chão, chorando e segurando uma cesta de morangos, vendo eles aprodrecendo no calor. Sem fazer nada.
Igual fiz com Ana.
Igual fiz com todo o resto.
Nada.
E até hoje, quase dez anos depois, tudo que eu me lembro, ou melhor, que não consigo esquecer é do cheiro dos morangos, e a imagem de Ana colhendo os mais vermelhos num campo silvestre.
Essa é a imagem que vem em minha mente todas as noites para reafirmar minha idiotice e inutilidade existencial.
Ana não morreu.
Fui eu.