Efeito Kuleshov 9
Futuro Garantido
Juan, funcionário da Duo Tech, consagrada empresa de tecnologia, é o mais novo sujeito de sorte a ganhar uma promoção. Mas uma promoção merecida, seu trabalho por lá é simplesmente notável.
Agora ele ganha cinco vezes mais do que os outros, porém há trabalho em boa parte do fim de semana, principalmente aos sábados. Tempo para a família é quase nulo, praticamente zero. Mas o que é isso? Vale a pena, não?
O homem não pode reclamar de nada, está ganhando para isso, oras. E ele não reclama mesmo, se está trabalhando duro e não tem tempo para a sua família é justamente porque a ama e quer um bom futuro para seus filhos. Então não há motivos para reclamar nem da rotina repetitiva: sair de casa todas as manhãs e abrir a porta da garagem, entrar em seu carro esportivo de couro macio e... ver sempre o mesmo mendigo pedindo um pedaço de pão ou um trocado para que ele mesmo compre.
- Quantas vezes tenho que repetir que está perdendo seu tempo?
- Mas não pode dar nem um pão velho?
- Já disse que não! Ontem eu te expulsei daqui e mesmo assim resolveu voltar. Não vai desistir nunca?
- A calçada é pública, senhor. Eu queria que me escutasse e...
- Eu. Escutando um mendigo. Nunca! O que você tem a dizer não me interessa.
Juan fecha as janelas do carro...
- Olhe para mim, por favor!
... e segue seu caminho, ignorando completamente o homem de rua. Mas tudo é sempre em vão, pois no dia seguinte o mendigo aparece de novo. Com sua barba tomando conta de boa parte do rosto, sua roupa rasgada e suja, pedindo pão, trocado e um pouco de atenção.
Juan nem tenta dialogar. Apenas sai em disparada com o carro, mantendo sempre as janelas fechadas, é claro.
- Me escute, por favor! Quero te dar um recado! Quero...
O mendigo chora. Chora e nada mais faz a não ser deixar as lágrimas iniciarem em seus olhos, correrem por sua face abandonada e pingar dos lábios quase escondidos sob a barba espessa.
Essa imagem se repete todos os dias. Tudo é igual: o pedido do mendigo, a falta de compaixão de Juan, seu carro disparando até sumir na esquina, as janelas levantadas, a tristeza do homem de rua, suas lágrimas teimosas.
Aquele sentado na calçada fica novamente para trás, aquele sentado no banco de couro do carro chega à empresa onde trabalha loucamente. E sua vida workaholic é motivo de discussão com sua esposa. A primeira de muitas. Tantas discussões durante meses levam ao divórcio. Divórcio leva à solidão.
Juan está sozinho naquela casa maravilhosa onde mora, só visita os filhos nas noites de domingo. Isso quando não há trabalho. Olha o trabalho aí de novo. Pelo menos isso ele ainda tem e é maravilhoso... até receber a péssima notícia de seu chefe:
- Terei que diminuir seu salário. A crise na bolsa nos atingiu em cheio. Estávamos bem estabilizados no mercado, mas trabalhamos com tecnologia e fomos prejudicados pela... Como posso dizer? “Traição financeira”.
Nesse dia ele volta mais triste para casa. Difícil saber se tão ou mais triste do que a vez em que se separou de Luciana e seus três filhos. Mas o que importa? Ele ainda tem um salário e está bem melhor que o pedinte em frente a sua casa. E ele continua lá, como se adiantasse algo ficar sentado no mesmo lugar, esperando a boa vontade do sujeitinho idiota que chega em seu esportivo preto.
Mas uma coisa diferente acontece: o carro não entra na garagem como sempre, apenas para em frente a casa e fica ali, próximo ao mendigo. Ele se levanta e caminha lentamente até o esportivo e bate no vidro fumê da janela. Há o som de choro vindo lá de dentro e o pedinte abaixa a cabeça, absorvendo o sentimento do “rico”.
Muito tempo se passou desde que o homem de rua se instalara ali pela primeira vez. E ali ficou todos os dias, fazendo o mesmo. Ele jura que nunca viu ou ouviu o “rico” chorar. Muito tempo se passou desde que Juan saiu de casa com seu carro e viu o mendigo ali pela primeira vez. Ele jura que nunca o viu indo embora. Até agora.
Meses depois a Duo Tech é obrigada a demitir alguns funcionários. O que antes era consagração se tornou medo e fragilidade. Juan é uma das vítimas do corte e volta para casa, dessa vez sem ter que retornar ao trabalho no dia seguinte. Se arrependimento matasse, já estaria enterrado. Sente falta de sua família e daria tudo para ter seu apoio agora que enxerga o quanto deveria dedicar um tempo a ela.
Mais cinco anos vão embora e Juan está com depressão, ainda não consegue arranjar um novo emprego, sua auto-estima é lamentável, motivação, pior. O fundo do poço é agora e talvez não haja mais volta. Tudo só piora a cada dia e sua vida “rica” se extingue. Chega ao ponto de vender o carro pra ter o que comer e a casa tem o mesmo destino tempos depois. Juan bebe, se torna dependente químico, tenta o suicídio três vezes, mas amarela em todas. Agora tem mais um motivo para se achar um perdedor.
Nem se dá o trabalho de procurar um novo lar. Entrega-se às ruas, se entrega ao destino, se entrega à vida. No início seu orgulho o impede de pedir esmolas, mas sabe que não há mais nada a perder.
Até que ele consegue se virar desse jeito. A idéia de suicídio continua em sua mente, mas no fundo ele não tem coragem para tal feito. E já que está na pior, porque não ao menos tentar algo novo? Por um momento ele lembra do mendigo que surgiu em frente a sua casa e agora sabe como se sentia. A sensação de abandono é para derrubar qualquer um.
Resolve voltar ao seu antigo lar para ver como estão as coisas por lá. Será que está a mesma de sempre? Ele para na calçada e contempla a fachada com brilho de saudade e tristeza nos olhos.
- Minha... casa. Minha casa.
O portão abre e de lá sai um esportivo preto, fazendo seu coração acelerar. O comprador não tinha esse carro. É idêntico ao seu. Não, é o carro dele mesmo. A mesma placa. Tudo!
- Não é possível! Como isso aconteceu?
Juan se aproxima do carro.
- Com licença, senhor.
E se assusta ao ver que se trata dele. O próprio Juan anos mais jovens e mil vezes melhor.
- Eu... Eu...
- O que você quer? Não vou te dar nada.
- Eu não... Eu...
Não consegue dizer nada. Os dias se passam e ele sempre vai para o mesmo lugar: a calçada da sua casa, tentando entender o que houve e pegar um pouco daquela época que jamais voltará. Aproveita e pede algo. Talvez ele mesmo possa se ajudar. Seria épico.
Mais uma vez o carro preto sai e Juan está lá esperando. Dessa vez precisa avisá-lo do que vai acontecer. Talvez Deus tenha lhe dado a oportunidade de concertar as coisas. Precisa dizer a ele mesmo o que vai lhe acontecer daqui a alguns anos. Ele corre na direção do carro.
- Por favor, preste atenção no que vou lhe dizer!
- Você de novo? Saia!
O Juan “rico” sai do carro e agarra enojado o maldito pedinte, empurrando-o na rua.
- Não quero mais te ver por aqui! Suma da minha vida.
É incrível como só agora ele lembra. O mendigo que sempre estava na frente de sua casa. Juan olha para suas roupas, encaixa todas as situações. O pedinte, o homem de rua... era ele!
- Meu Deus! Por que não ajudei aquele mendigo? Por que não me ajudei?
No dia seguinte ele já não tem mais esperanças de conseguir alguma coisa. Nada daquilo vai mudar. Nada que faça vai alterar algo. Ele sabe como era esnobe.
- Quantas vezes tenho que repetir que está perdendo seu tempo?
- Mas não pode dar nem um pão velho?
- Já disse que não! Ontem eu te expulsei daqui e mesmo assim resolveu voltar. Não vai desistir nunca?
- A calçada é pública, senhor. Eu queria que me escutasse e...
- Eu. Escutando um mendigo. Nunca! O que você tem a dizer não me interessa.
Juan fecha as janelas do carro...
- Olhe para mim, por favor!
E dispara pela rua. Mas ele não pode desistir. Deve ter algum jeito, mas tenta outra vez no dia seguinte e o resultado é o mesmo.
- Me escute, por favor! Quero te dar um recado! Quero...
Ele chora.
***
Juan nunca foi rico de verdade. Tinha as riquezas materiais, mas não via ou muito menos sentia o amor de sua família. O que tinha de poder, não tinha de compaixão e amor ao próximo. Não ajudou ao mendigo que todos os dias aparecia na calçada de sua casa e pedia ajuda.
As coisas poderiam ser diferentes se parasse para escutá-lo pelo menos uma vez. Se não fugisse e o ignorasse todos os dias. Ele sentiu na pele o abandono quando estava na pior situação de sua vida, mas só depois viu o quanto perdeu em não ter ajudado o homem de rua. O homem que mais tarde se revelaria como sendo ele mesmo. O tal Juan. Realmente foi épico, mas no pior sentido.
Poderia ser uma obra do destino, abrindo seus olhos e o mostrando sua própria derrota. Talvez até zombando dele. Mas esse encontro nada casual que quebrou as barreiras do tempo caminhou diretamente para um... Efeito Kuleshov.
FIM DA PRIMEIRA TEMPORADA