Falta de Ar

1

Não é segredo que vou morrer.

A voz que vem do cockpit diz que vão tentar uma aterrissagem de emergência.

Para mim ela está dizendo que vai arremessar o avião contra o chão comigo dentro.

Penso que seremos encontrados aos pedaços, queimados como carne passada demais numa churrascaria, e eles nos fotografarão para colocar nas páginas de algum tablóide dizendo o motivo misterioso de nosso avião ter caído, associar a alguma teoria da conspiração, logo na página atrás da invasão alienígena de 2012. Algumas pessoas baterão nas portas de umas sessentas pessoas que estão agora no voo 414, pedindo desculpas, procurando um acordo extrajudicial, qualquer coisa para não desprestigiar a companhia aérea. Pagaram a nossa despeza funerária.

Quase 70 anônimos irão desaparecer nos próximos quinze minutos – isso são quase seis pessoas por minuto, literalmente virando cinzas.

Nossos restos não serão jogados nas margens do Sena.

Nosso trabalho de vida não passará para as próximas gerações.

Nossas cinzas não serão depositadas num satélite e enviadas ao espaço para brilhar para sempre.

Não, nós seremos varridos e colocados em saquinhos.

Alguns funcionarios com pinças e espatulas vão pegar restos de relógios e cintos perdidos pelos cantos, alguns funcionários vão encontrar alguma prótese mecânica ou algum olho de vidro há quase mil metros do local da queda, e vão limpar a região, e em poucos dias não haverá mais nada. Como se nunca estivessemos estado ali.

Seremos lembrados como uma série de numeros nas estatisticas do ano que vem. Serviremos a propósitos cientificos para pesquisas, “A probabilidade de um boing 141 cair é de uma em 2.750.000”, agora conosco esse número vai ser elevado em 1,1 chances em 2.750.000 de decolagens. Isso me faz pensar em como somos sortudos.

O acento começa a tremer, a fuselagem parece solta. Alguns parafusos caem, quicando pelo chão do corredor. Não demora até que mascaras de oxigênio caiam sobre o colo dos passageiros – exceto que sobre o meu acento não cai nada – vejo as pessoas debilmente tentarem colocar elas com mãos tremulas, alienadas de como elas funcionam, se são automaticas, como se manuseiam, e não facilita o aprendizado sobrevoando o chão a 30.000 pés de altura.

As pessoas parecem desesperadas, mas por algum motivo estou apenas ansioso, mas não nervoso. Estou planejando no que direi em voz alta momentos antes da colisão final. Mas não pode ser algo muito grande, pois o chão pode chegar mais rápido do que eu imagino.

Então eu paro.

Penso em minha vida e em meus feitos. E me pego sem palavras.

Tudo que fiz em toda a minha vida não tem potencia para criar nem uma unica frase de efeito.

Me sinto um peso morto. Serei algo além de C e H²O?

O mundo precisa realmente de mim, não é? Senão porque teria sido criado, quer dizer, somos todos especiais e unicos, não é mesmo?

Às vezes eu gosto de pensar que minha vida é um mistério e que tenho um objetivo a atingir. Que minhas ações deixaram marcas sobre a humanidade.

Mas eu sei que isso é mentira.

Alguns religiosos dão as mãos e começam a fazer um circulo de orações, oram o “padre nosso”, e eu só consigo pensar se deixei a torneira do banheiro aberta – a conta do mês passado veio alta.

A voz do cockpit vem novamente, toda calma e burocratica:

“Não há motivo para panico.”

Mas os ouvidos dos passageiros não captam isso, e o burburinho só cresce, e agora começam gritos histéricos quando as turbinas começam a fazer um ruído estranho como se estivesse rodando com mais RPM do que deveria e fosse se desprender da nave.

E lá vem mais oração, agora mais alto e mais rápido.

Talvez se você acreditar num paraíso a idéia de ser atirado contra o chão não seja assim tão terrivel. Ou se como eu a sua mascara de oxigenio não caiu e você está chapado pela falta de oxigenio e você sinta seu corpo sonolento como se você tivesse tomado uma superdosagem de algum remédio tarja preta.

Olho tudo como se fosse o monje que pisa na brasa.

Isso deve ser o mais perto de uma epifania que um idiota pode chegar.

2

– Mãe!

Tenho 22 anos e já não suporto mais ela arrumando meus cabelos.

– Ora, João, você precisa cortar esse tufo que chama de cabelo!

O modo como tratamos nossos filhos nesse século é o motivo porque temos tão pouca gente independente. Mas de certa forma eu gostava, quem não gosta afinal de ser todo mimado, ganhar uma grana sem trabalhar.

Não se precisa saber nada da vida para ficar em casa.

Não há um mundo perigoso a ser desbravado atrás da tela da TV.

E daqui a seis meses eu concluo minha faculdade, pego meu diploma e terei um emprego garantido pelo meu pai. Para que eu iria querer saber sobre politica se podia comer McDonalds e tinha minha cama pronta quando chegava em casa?

Sempre fui uma pessoa completa, sempre tive tudo, e nunca houve um dia de medo. Tudo é conhecido e aconchegante.

Vou para faculdade com o penteado lambido que minha mãe ajeita em minha cabeça. Minha camisa de linho está toda bem passada e combina com o tom da minha calça. Vou sempre bem arrumado. Às vezes eu e minha mãe ficamos várias horas procurando o pullover que se adeque a minhas calças cáqui. Não é fácil, porque não se pode vestir um tom salmão sobre um tom amarelo. Todo mundo sabe disso.

Estou andando dentro do limite de velocidade, olho pelo retrovisor e não vejo nada, então eu cruzo, quando um carro vem em alta velocidade, e tudo que me lembro é que estou num hospital. As paredes são superbrancas como minhas cuecas de terça-feira.

– Eu já disse, eu estava no limite e não tinha ninguém! – é o que digo ao oficial da policia que vem me interrogar.

– Bem, o senhor é responsável pela morte de um homem, isso não vai servir de desculpa.

– Eu o que?

Eu desmaio.

Quando acordo meus pais estão do lado da minha cama.

Minha mãe se lamuria:

– Oh! Deus! Que será de nosso filho, Carlos ! Estava tudo preparado, tudo, e agora tudo pode ruir. Você precisa contratar os advogados!

Meu pai tem uma pequena garrafa de uísque nas mãos, ele toma um gole e saí da sala.

– Oh! Como você pode não prestar atenção! Quantas vezes já lhe disse isso! Não sei mais o que fazer! – e todo aquele blablablá materno que você bem conhece.

– Eu realmente... não sei. – é o que eu digo.

E eu saio até no jornal. Foi a primeira vez que vi minha foto lá.

Quando meu pescoço volta ao normal, o médico me dá alta, e na frente da porta que dá para a saída tem um monte de homens e mulheres com cameras, microfones e perguntas confusas. Vários cliques vem de todos os lados, me cegam, e me levam dali de carro.

Mas tudo isso foi esquecido bem rapido. Meu pai conseguiu fazer o dono do jornal local esquecer isso. E quando se saí da mídia não se existe mais. Seja o que for.

E então minha vida continuou.

Agora estou indo pegar meu avião, serei juiz, como meus pais sempre quiseram.

3

Sabe quando a coisa começa a ficar feia?

Quando uma janela parece trincar, pronta a despressurizar toda a nave. E todo mundo grita.

É a segunda vez que acontece algo imprevisto em minha vida.

A sensação é ótima.

Como a pressão atmosférica dentro da nave é menor do que a de fora, se a janela se rompesse o ar seria sugado para as duas se equilibrarem. Em consequencia, tudo que existe dentro seria puxado para fora. Se a porta que treme lá no meio do caminho se abrisse todos seriamos jogados para fora de uma só vez, brigando pelo vácuo de saída do portal.

No momento em que você tem certeza que vai morrer a maior sensação é de frustração por tudo aquilo que sempre teve vontade de fazer.

Você se lembra da vontade que tinha de fazer voo de asa-delta.

Lembra-se de todas aquelas paixões de colégio que ficou timido em tentar algo.

Se lembra que não xingou o bastante.

Que não trepou o bastante.

Que não comeu o que queria.

Que não fumou por medo de morrer.

E quando a morte finalmente chega para seu desapontamento, não é apenas uma coisa que você não esperava, mas algo que você em nada fez para acontecer. É como se você não pudesse escolher nem a forma que quer morrer. Meus meios são completamente ineficazes mesmo para causa minha morte.

E então você fica triste.

E a frase que você queria dizer, bem, você percebe que não consegue dizer nada pelo simples fato de não ter feito nada.

Então você fica puto.

Uma das ultimas sensações que você tem é a vontade de reverter tudo isso, nem pelo medo de morrer em si, mas porque você quer insanamente ser a causa da própria morte. Porque a gente acredita que somos donos de nós mesmos. E que se eu vou morrer, então eu escolho.

Da mesma forma como queremos escolher nosso desenho no cartão de crédito. Como queremos escolher a cor das nossas paredes. A raça de nossos cachorros. A cor do cabelo de nossas mulheres. Escolhemos até mesmo um plano de saúde. Mas não escolhemos as coisas que ele vai cobrir.

E isso nos deixa profundamente irritados.

Porque isso não é algo que o dinheiro compra.

O poder não compra isso.

A beleza não compra.

Nesse momento somos todos igualmente fodidos, com uma vida incapaz de criar nada, com a saúde já debilitada pelo acúmulo de trabalho, com pequenos vicios aqui e ali para impedir que caíamos na completa depressão que é o nosso dia repetitivo e chato.

Mas a grande pena é que só percebo isso minutos antes da minha morte.

Quer dizer, eu poderia fazer algo agora.

Se o avião milagrosamente parasse de tremer e fosse levado ao chão, eu seria outra pessoa. Saberia dar valor aos pequenos prazeres de que abri mão até esse momento da minha vida. Mas porque tem que demorar tanto?

Por que eu não percebi isso na faculdade?

Teria feito toda a diferença do mundo naquela época.

Mas eu acho que nunca fui feito para pensar, afinal estava tudo lá explicado, minha profissão não precisava de raciocínio sobre a vida, não eram de seres humanos que todos aqueles códigos falavam. Eram de robos. Eu era um deles. Eu entendia daquilo.

Então as luzes do corredor se apagam, tudo treme. Alguns bagageiros abrem, e as malas caem no chão, muitas se abrem com o impacto, jogando roupas e livros de bolso, espalhando tranqueira por todo o corredor, caindo na cabeça de outros passageiros. E então os gritos começam a ficar histéricos.

– Irmãos, Arrependei-vos, que chegada é a nossa hora! – um pastor berra

É a hora, o avião vai cair.

E eu estou sem ar nos pulmões.

Não consigo respirar.

Tudo treme, todo mundo grita e chora.

– Não temei, irmãos!

Então as luzes voltam.

Tudo volta ao normal, o avião, as malas param de quicar no chão.

Lá do cockpit vem a voz:

– Passamos pela turbulência, desculpe-nos pelo incomodo.

E eu sem ar sinto tudo ficar negro.

Tudo fica fora de foco. Preto.

4

Duas semanas depois estou em casa.

– Nossa, deve ter sido horrível! – minha mãe diz.

– O que? – eu digo.

– Sua viajem!

– Ah, aquilo. Não lembro muito bem. Eu desmaiei por falta de ar.

Estou sem vontade de ouvir isso, estou com a fatura de meus cartões para revisar, são muitas lojas e valores muito altos, não posso ficar desatento. Estou com ações para analisar. Sou um juiz agora. Sou respeitado. Não tenho tempo para essas coisas.

Sou um homem importante agora.

– Nem imagino o que você deve ter pensado lá em cima querido! Dizem que essas mudam a vida da gente para sempre!

Somo tudo com uma calculadora.

Preciso sair agora para jantar com o senador.

Vamos negociar um problema onde muito dinheiro está envolvido.

– É, acho que muda – eu digo a minha mãe.

Pego meu terno Mancini.

Abotoo meu Rolex.

Ajusto minha abotoadura.

Arrumo meu anel de rubi que ganhei na tomada de posse.

Parto meu cabelo em duas partes bem penteadas.

– Boa noite, filho! – minha mãe diz.

Saio pela porta.

Gabriel Dominato
Enviado por Gabriel Dominato em 19/09/2009
Reeditado em 19/09/2009
Código do texto: T1819987
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