A vida é fogo
O corpo estava em chamas. Agora ele era mais do que indivíduo, pois a luz que de si emanava como que de um pequeno sol, mais o cheiro, mais o fumo, faziam dele uma referência na paisagem urbana, multiplicando-o. Ele tinha naquela época quarenta e quatro anos idos e já estava cansado de queimar aos poucos. Ele queria ser uma estrela de fogo, recusando-se a uma vida (morte) comum, com seus crediários, sermões, noticiários forjados, livros planejados pra reproduzir ignorância, a obrigação da seriedade moral cristã nas rugas e nos cabelos brancos, o sofá do vovô, o velório com um monte de gente repetindo frases feitas, frases moldando falsos pesares, frases copiadas e repetidas como a vida, frases sem fogo.
Passara semanas fechado num apartamento fazendo tatuagens no corpo. O que ele tatuava? Frases. Como um Rosário solto na selva de concreto, ele sentia precisar daquelas palavras escritas. Escrita.Versículos bíblicos, pequenos aforismos de pensadores como Sêneca, Epicuro, Nietzsche, Fernando Pessoa e Pedro Bial, pequenos trechos de escritos comunistas, versos budistas, versos de escritores da beat generation, além de misteriosos códigos de barra. Saiu do apartamento com uma sensação de plenitude, de orgulho pela coragem da decisão tomada. Tomou ácido com uísque, e foi. Galão plástico em mãos, passou no posto de gasolina e mandou encher. Na faixa de pedestres, na hora do rush, parou no meio, jogou os cinco litros de gasolina por sobre a cabeça e deixou que toda a roupa ficasse embebida. Riscou o fósforo e mandou ver. Rapidamente – mas não tão rápido assim – pessoas logo vieram socorrer, tentando abafar o fogo da imensa fogueira viva em que ele se transformara. O enxame de seres humanos que fervia nas calçadas parou para contemplar todo o espetáculo. Depois, famigeradas equipes de TV tentavam explicar o que é tão difícil, e fotógrafos amadores procurando o melhor ângulo para registrar o evento. Helicóptero. Hidrante. Tarde para socorrer. Cedo pra explicar.
IML – RJ. Trabalho de identificação do cadáver. Sobrou algo. Havia digitais pra contar a identidade. E havia uns poucos pedaços intactos de pele branca tatuada. Num deles a inscrição “a vida é fogo”. A vida é fogo: estava escrito com tinta preta esverdeada e com um jeito de amor em fragmento, meio que em forma de reclamação, meio que em forma de homenagem ao fogo. O amor – vislumbrado como loucura – a alimentar, como um combustível renovável, essa porra toda, maravilhosa. Essa vida que é fogo. Love, peace and desire.
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