O Cochicho Literário

Empoeiradas, as prateleiras, ruas de poesias ainda levam a caminhos inusitados. Que curioso lugar é esse, estrada de conhecimentos que transforma nossa capacidade de enxergar as coisas e que se invade de silêncio, mas que não cala nunca, e que além disso se faz ouvir com um suave cochichar?

À noite, fica ainda mais misterioso, não recebe tantas visitas a não ser daqueles poucos e incansáveis ouvidores de “cochichos”; aqueles seres inquietos que entre um corredor e outro tentam escutar a tal conversa em baixo tom, como se estivessem em busca de si mesmo em algum outro lugar.

Numa noite dessas qualquer, antes de apagar as luzes e trancar a porta, resolvi dar uma conferida no cochicho borbulhante de todos os dias. Aproximei meu ouvido, mas nada pude compreender, não entendi uma só palavra, porém o tal murmúrio continuava.

Mais uma noite de trabalho, estou novamente entre estantes e o pó com uma pilha de livros nas mãos a serem guardados, livros recém folheados que retornam calados, satisfeitos, acabados de serem lidos. Procuro pelo lugar adequado, onde existe uma classificação em ordem alfabética de sobrenomes. Eis que encontro Mário, aos cochichos com Pablo – já me acostumei com estes sons de água corrente (corrente de pensamentos) - empurro um para cá, outro para lá e coloco entre eles o Fernando.

Aquela porém, não era uma noite comum, a janela denunciava a chuva que, vestida de garoa, parecia interessada na conversa, tentava adentrar sorrateira em pingos discretos e curiosos.

Eu caminhava inquieta, procurava dentro de mim algo que me desse sossego, respostas, consolo, entendimento sobre as coisas da vida, quando passei os olhos numa das prateleiras, li vários títulos, nomes que me soavam familiares, escolhi um autor, abri o livro que falava justamente sobre a morte. Logo no momento em que eu pensava sobre a vida! Será mesmo necessário conhecermos o oposto para distinguir uma coisa da outra? Era a Lya que sussurrava: “ (...) ela é a grande personagem, o olho que nos contempla sem

dormir, a voz que nos convoca e não queremos ouvir, mas pode nos revelar muitos segredos. “ Espirituoso e bem-humorado, era a vez de Mário que me alertava sobre a felicidade: “Quantas vezes a gente, em busca da ventura, procede tal qual um avozinho infeliz: em vão, por toda parte, os óculos procura, tendo-os na ponta do nariz”.

Com o livro nas mãos, fiquei “ouvindo” aqueles versos ritmados, de quem tem uma vasta experiência de vida. De repente, um silêncio absoluto mobiliza meus sentimentos e me rendem um desabafo: de que mesmo vale a vida? Que valores emprestamos à nossa cultura? E o tempo, calendário apressado inventado outrora, que não pára nem por um cafezinho? Tantas escolhas, tantos caminhos, história de guerras, revoluções e descobertas, tragédias e conquistas que carregamos subcutâneas e que escapam em frestas de comportamento, de pré- conceitos, ideais de vida e de felicidade.

Quantos anos de estudo e conhecimento estavam ali, encostados uns nos outros, convivendo harmoniosamente em suas contradições? Que universo deliciosamente caótico e organizado é esse? Produtor de escritas, muitas vezes extemporâneas que me servem hoje como roupa sob medida. Usina de imagens que de tão sutis, dissolvem paredes!

Vozes capazes de penetrar na minha pele a ponto de me transformar à cada linha. Páginas vivas em pedaços de papel que fazem parte agora do meu ser (humano) e da forma como recrio o mundo que me circunda.

Fernando, essa boa Pessoa, me consola diante dessa estranheza de mim mesma que é puro movimento mutante, recipiente de substâncias abstratas e experiências subjetivas de cor existencial: “És feliz porque és assim, todo o nada que és é teu. Eu vejo-me e estou sem mim, conheço-me e não sou eu”.

Que lugar extraordinário que na minha mais humilde condição, torna-me rica, revigorada de um saber que não cessa e que me abre horizontes de possibilidades, onde meus pés não podem tocar jamais, mas minha alma – e essa sim – voa rasante por todos os recantos de contos, de versos, de poesia e

beleza.

Silêncio na biblioteca! É Nietzsche quem cochicha na voz de Zaratustra, trapezista da loucura. Locura? É Foucault, que conta a história, “A História da Loucura”. História? É o amor de Peri pela índia Ceci. Ufa, pausa para o chá, com a Marta, aquela, Medeiros de todos os domingos. Quem? Sartre e Simone de Beauvoir, quem não ouviu falar? Maquiavel, que maquiavélico! Há quem dele gostará.

Já ouviram o choro de Juca? Juca Pirama, bravo índio herói devorado. Já encontraram os Capitães de Areia? Vários deles escrevem seus nomes na poeira das ruas, nas sinaleiras. Quem viu por aí Napoleão? Encontrarás, então nos loucos e mendigos, “Bonas Partes” dele.

Somos feitos de histórias, de fantasia, de imaginação. Humanos escritores da própria vida, que transformam frases em ideais, lágrimas em versos e rimas, contamos um conto a cada dia, o amigo vira prosa e a prosa, poesia.

Boa noite! Agora sim posso entender o “cochicho” imortal da literatura e quem sabe um dia, fazer “cochichar” a minha própria história.

Giovana Rossa
Enviado por Giovana Rossa em 03/09/2009
Código do texto: T1791346