Maluco Beleza
Vislumbro cinismo na cena bucólica, a família perfeita e feliz, que passa na rua: papai fortão, incentiva à saúde, sente-se poderoso, protege o lar e o rebento. Rebento miúdo, trôpego, arrastado a um braço pelo genitor sabe-tudo. No outro braço, o menino recebe a proteção da mamãe zelosa, carinhosa, estilo perfeição. É a família, é o esteio da sociedade, da espécie, do amor e também de tudo que é mau. Mas este, abafemos. É o clã brasileiro que vai adoçar a vida consumindo delícias de chocolate. E se tudo der certo, tudo dará certo, a economia americana se inspirara em Fênix e precisará peniqueiros; e, estaria, por fim, salva a classe média tieteense; ainda que seja para aprender ‘memo o ingrês.’ Anojo-me, cuspo de lado e enfio a cabeça em outros rumos.
Travo. Lá no fundo, olhos profundamente verdes, corpo sarado, sonhos fincados na lua de vento leve. Desenha-se, pacientemente, com o fio da tesourinha afiada o retângulo numa uma folha de papel, cuja aparência é de coisa velha, amassada, especial à ação do fogo. Ouvir-se-ia quase o barulhinho surdo da lâmina engolindo a celulose: tic-tic-tic. E sem pressa, delicadamente, quase como parte de um todo ritual sagrado, despenca-se, em cima da mesa de mármore, o estreito e comprido pedaço de papel, adrede preparado para receber o recheio divinal, o fumo.
Entro. Sento-me à mesa como a descobrir os segredos para erguer bandeira branca à sangrenta guerra interior dos tempos modernos. Quero conhecer o sagrado que leva ao paraíso, que faz rir, que faz a guerra interior tornar-se instantânea paz universal. Eis a pretensão do inocente cigarrinho do capeta.
Uma trouxinha, como se fosse a banda de uma rapadura mineira, surge de entre um longo e emaranhado plástico visguento e mole que se moldara ao tijolinho. Cheira-se uma, duas, três vezes... Faz-se descrição científica e apologia às propriedades calmantes e curativas como uso medicinal por antigas tribos naturalistas. E os olhos verdes fulminam-me com um olhar denso, profundo, tão profundo quanto o alto verde mar cearense, e diz-me, convidativo: ‘-cheira’!. A não gastar o latim, digo que cheirar fumo é foda. Cacófato cheio de intenções de provocar riso e aliviar, assim, a saia-justa.
E se eu desse uns tragos? Comporia talvez um conto magnífico, o conto dos contos. Dou ou não dou uns beijos naquele canudinho de papel amarelado, recheado de cânhamo? Trago à mão e revisto detalhadamente a tal piteira. Um canudo com peças em autorrelevo a lembrarem partes disformes do rosto humano. Obra de algum hippie que se sente incompreendido gênio das artes plásticas. Tragar o não tragar? Na dúvida, aquieto-me e vejo devagar o que se estampa.
A mão grande segura à ponta os dedos grossos e compridos o tijolinho miúdo. Simultâneo a outra mão desliza leve e firme a tesoura para desprender finíssimas lascas, que caem sobre o pequeno lastro do papelete retangular. De quando em vez, os filetes são ajuntados num montinho, ao centro do papel, a ser calculado. Julgado insuficiente, a tesoura lambe o fumo grosso, e deste é extraído mais partículas. E assim sucede-se até atingir um tanto suficiente a curar o espírito.
Tão pesada anda-me a alma. A mídia ariana finge estar tudo bem no Nordeste. Nem preciso fechar os olhos para ver. Mesmo conversando, salta-me aos olhos a imagem de pessoas com água pelo queixo. Seriam já defuntas? Morreriam pela madrugada? Por que a equipe que as filmou não as resgatou também?
Definida a quantidade, a tesoura é posta de lado, o restante do tijolinho é embrulhado no longo plástico, e bem guardado num lugar seguro. Pega-se então o papelote recheado de fumo picado, unem-se as extremidades; uma vai sobrepondo-se à outra, e, lentamente vai surgindo o rolinho, o cigarro fino. Uma série de batidinhas suaves e firmes, de um lado, do outro lado... Como a compactar o fumo retalhado dentro do canudo de papel amarelado desdobrado. Uma lambidinha aqui, outra ali, e, então, está pronto o cigarro, a cura às dores do mundo.
A mim, a pior hora, é a do fogo. Antecipo o revirar do estômago como o precipitar-se goela à fora. Temo vomitar todas as vísceras, saio de perto, para bem longe. Não adianta. A fumaça me persegue e aonde quer que eu vá, lá está ela a rasgar-me as vias respiratórias.
Lá no fundo, um homem expurga todas as aflições, sugando ao cérebro toda a liberdade. Suga, prende e solta lentamente a fumaça, expele grunhidos guturais, até ocar plenamente a cabeça, e, então, enchê-la de paz necessária ao ingresso no mundo maluco beleza. Leve, livre, filosofa, ri de si, de mim, vai à lua e por lá fica horas. Leve, livre...