OLHOS FAMINTOS

Sentia a correnteza levar-me a dias, fria. Por vezes, pequenos demônios emergiam das profundezas e mordiscavam-me a carne decomposta. As pedras eram o pior, despedaçavam-me ao longo de minha jornada.

Foi então que, quando já me estavam esgotadas as esperanças, eis que surgira um pescador sentado à margem direita do inferno, quero dizer, do rio. A princípio avistei apenas um vulto indefinido, o qual tornara-se mais nítido a medida em que eu me fora aproximando.

Fui chegando perto, sem ser notada, até que por fim meus pés encontraram os dele. Olhou-me estaticamente. O que é deveras a morte senão o derradeiro no ciclo da vida? Naquele momento a única coisa que me diferia daquele ser era um ínfimo intervalo de tempo entre o ar que entrava em seus pulmões e algum fatal infortúnio. Alguma ininteligível energia fora despertada naquele encontro entre duas faces de uma mesma existência, então, como se não pudesse explicar, um impulso me tomara conta, de minha carcaça, e meus olhos abriram de súbito. O susto fizera com que o homem levantasse, seu semblante agora era de pavor.

Sem seus pés a interromper-me o curso seguiria em meu martírio, então sem pensar em nada, nem deveria, agarrei-lhe as pernas. Ele, horrorizado, agachou-se e tentou retirar minhas cadavéricas mãos de seus tornozelos com as dele. Fora inútil. Agarrei-o decidida a levá-lo comigo em meu percurso caso ele insistisse em devolver-me a aquele maldito rio.

O homem debatia-se desesperado, gritava, rezava, chorava, mas não conseguia livrar-se.

De repente um outro, com cara de lua cheia, aparecera intrigado. Soltei o pescador, então, e recolhi-me a minha insignificância de quem já não mais vive.

Eles entreolharam-se por alguns instantes, trocaram algumas palavras. E o outro, incrédulo, levou o pescador embora.

Esperei por muito tempo alguém vir buscar-me, mas ninguém apareceu. Longe da água, julguei-me a salva de malefícios e já sonhava em repousar meus ossos por toda a eternidade em uma cova quentinha, só minha. Mas, para meu desespero, percebi aves negras a voarem não tão alto sobre mim.

A última coisa que sei foram aqueles pequeninos olhos, ávidos e famintos.

Caterine Araújo
Enviado por Caterine Araújo em 21/08/2009
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