A invasão dos ratos chineses - I
Foi num domingo que tive o primeiro indício de que algo absolutamente insólito iria acontecer. Como aquele estava sendo um dos dias mais quentes do ano resolvi sair para tomar uma cerveja no bar do seu Aluízio, que ficava a menos de cem metros de minha casa. Foi nesse curtíssimo trajeto que eu vi um grande rato caminhando vagarosa e imponentemente no meio da calçada, como se fosse um cidadão a desfrutar dos privilégios da cidade. Esses bichos que, sabemos existir aos milhões nos grandes centros, que se refugiam nos esgotos e se alimentam do nosso lixo, são normalmente muito desconfiados – quase mais do que as pessoas da cidade onde eu vivia – de modo que dificilmente permitem uma relação mais próxima.
O rato vinha em minha direção, em seu passo cadenciado, deixando-me em dúvida sobre o que fazer. Poderia assustá-lo para se lembrar que é um rato e, com isso, quebraria um protocolo há séculos, talvez milênios, estabelecido na relação entre homens e ratos. Poderia simplesmente dar-lhe um chute, para que aprendesse a nunca mais fazer isso. Poderia dar-lhe muitos chutes até que parasse de se mexer – e esse seria o comportamento esperado, dada a tradição e os princípios que regem a relação homens-ratos. Como ele estava bem próximo, parei a um lado da calçada para esperá-lo, enquanto decidia o que fazer. Pouco antes de passar por mim, o rato parou também e, juro, olhou fixamente em meus olhos, encarando-me como se fosse eu o insolente naquela circunstância. Aquele olhar gelou, mas não chegou a dar medo. Bati o pé para assustá-lo, esperando que dessa vez se comportasse como um rato comum, isto é, corresse desesperado para o buraco mais próximo. Ao contrário, talvez para provar que não era um rato qualquer, o bicho franziu o sobrecenho direito, fez um trejeito esquisito com a boca e seguiu o seu passo calçada adiante, desprezando-me. Fiquei olhando enquanto se distanciava. Um rato respeitável, não tive nenhuma dúvida.
Ao chegar no bar logo avistei Ken Chong, velho amigo de faculdade, sentado sozinho numa mesa. No painel de plasma (PP), que media 2 x 4 metros, ele assistia uma matéria sobre as dificuldades na colonização da Antártida, algo pouco interessante. Copo cheio, ele também tinha acabado de chegar. Naqueles tempos, Ken era analista ambiental de uma gigantesca indústria de produtos eletrônicos, portanto nada melhor que encontrá-lo, pois haveria de me dar alguma explicação razoável para o episódio. O seu Aluízio trouxe um copo enquanto eu narrava o salutar acontecimento.
– Coisa esquisita, os ratos vivem escondidos, diria que esse é um rato suicida. – Interveio Ken, risonho. – Mas a reação dele, aparentemente ameaçadora, não condiz com o comportamento desses animais, mesmo os mais inteligentes e adestrados.
– Talvez tenha fugido de um circo ou seja um rato de estimação, afinal tem gente que cria cobra, aranha, porque não um rato?
– Pouco provável, é mais lógico pensarmos que seja um rato de laboratório que sempre viveu em cativeiro e fugiu. Mas entendo pouco de ratos, só sei que, na cidade, eles são uma praga e reproduzem-se mais do que chineses. – E deu uma gargalhada espalhafatosa pelo peso de sua tiradinha irônica. – Afinal, porque você não meteu o pé nesse rato?
– Não sei, ele impôs respeito, acho que merecia uma chance.
E assim terminou nosso breve colóquio sobre o ocorrido. Depois continuamos a conversa falando sobre política, guerra e se poderíamos continuar tomando uma cerveja tranquilamente caso a situação entre o Brasil e a China se agravasse.
Ken, nascido na China, veio ao Brasil com 12 anos. Nunca soube porque, mas ele era diferente dos milhões de outros chineses que viviam no Brasil – acabrunhados, arredios e não gostavam de se misturar. Até diria que ele se comportava de forma mais abrasileirada do que muito brasileiro. Bebedor, falante, piadista, gostava de samba, sempre estava bem humorado e disposto a ajudar quem precisasse. Tinha fluência em mandarim e português e, nos fins de semana, costumávamos tomar algumas cervejas. Um cara legal!