AMORES BRUTOS
Ele podia ter telefonado, podia. Ela não estava para brincadeiras naquele dia. Seus nervos brutais se sacudiam, numa erupção colérica. A mãe percebera logo pela manhã quando, ao ralhar-lhe por um desleixo qualquer cotidianamente repetido, ela rebentara numa profusão de xingamentos em alguma língua extinta. Então o gato da vizinha pulara o muro e da terra o sangue de seus antepassados clamara por vingança. Naquele dia ela se estranhara diante do espelho achando-se feia, descarnada, os cabelos desalinhados, os dentes amarelos. A náusea lhe subira do ventre até a garganta. Ele pagará por isso, pois tudo isso é culpa dele. Ela não estava para brincadeiras. E quando ele surgiu lá longe, vindo da galeria, ela já sabia o que faria. Não fora preciso mais do que um minuto. Recolheram depois as pistas entre os escombros. Encontraram uma bonequinha desfigurada, mas o sorriso lindo e sarcástico perdurara, mesmo sendo de plástico, o que representava uma afronta ao cadáver do homem no chão.
Vagner Rossi