Morte e Espelhos
Mais um feliz dia de trabalho para o Dr. Shoji. Ele chega pontualmente às 07h04min – nem um minuto a mais nem um minuto a menos – ao seu distinto consultório, num dentre os tantos arranhacéus no centro de Tóquio; 49º andar.
— Ohayou, Menial San!
— Ohayou, Dr. Shoji, como vai a família?
— Bem, muito bem, eu diria, gentileza sua perguntar.
Seu inglês era absurdamente perfeito para um japonês! E ele se orgulhava disso - teve a melhor educação que o dinheiro e a disciplina podem fornecer, viajou o mundo e ao abrir seu consultório em Tóquio, fez questão de uma secretária americana - e poliglota! - para que assim atendesse melhor a todo e qualquer paciente, afinal "a insanidade não escolhe descendência" já dizia um provérbio de sua própria autoria.
— A senhorita poderia, por obséquio, levar uma xícara de chá até a minha sala, dentro de 4 minutos?
— Pois não, doutor. Chá verde, sem açúcar e 4 biscoitos para acompanhar?
— Sim, minha jovem, seria de meu agrado.
Era assim, todo santo dia, nem mesmo uma vírgula mudara de lugar – muito menos o chá – ainda assim, conferir as preferências quanto ao chá e o número de biscoitos era algo imprescindível para o bom relacionamento profissional, que já durava 4 anos!
Não tão pontual foi a chegada do primeiro paciente – Hiroito Okashi – primeira consulta. Aliás, como todo e qualquer paciente do Dr. Shoji: uma única consulta era suficiente para curar qualquer perturbação, conforme garante sua propaganda: rodapé de 4X4 cm, publicada a cada 4 dias, em quatro idiomas, logo abaixo do obituário:
"Para que o seu nome não esteja aqui amanhã, o meu está hoje: DR. KAGAMI SHOJI"
Sua secretária tomara boas lições de marketing, e segundo ela, o obituário é sem dúvida o melhor lugar para angariar os D’s (deprimidos e/ou desesperados).
Sr. Okashi procurava cupons de desconto para guloseimas quando, por acidente recortara o rodapé do Dr. Shoji e por pura gula ali estava – atrasado e esbaforido. O elevador teimava em parar sempre no andar inferior, e subir um lance de escada não foi nada agradável para o homem de 130 Kg.
Sr. Okashi não só estava atrasado e esbaforido, como também ensopado de suor! Ele se apóia na parede e entrega o cupom suado e amassado à secretária, que sorri gentilmente e pelo telefone anuncia ao doutor a chegada do paciente – sem nome mesmo – seu serviço preza pelo absoluto sigilo!
O homem, sem entender "que raios de lugar é esse" e torcendo para que "ao menos o brinde valesse o sacrifício da escadaria" é então conduzido ao divã. Confuso e atônito, ele apenas senta naquele "banquinho confortável", enquanto o doutor faz o seu trabalho.
Exatos 40 minutos depois o homem deixa o consultório - calmo e bem disposto. Na saída esvazia os bolsos na lixeira da secretária, que com o mesmo sorriso automático, olha e pensa "como pode caber praticamente uma confeitaria inteira no bolso de um homem?" (...minutos de neurônios em sacrifício...) e a resposta: "é claro: é um bolso grande!"
Cerca de 90 minutos depois chega o próximo paciente – homem carrancudo, cara de poucos amigos, ombros tensos, olhar ameaçador – "um americano típico" pensa a Srta. Menial e sem ousa dirigir-lhe a palavra, apenas sorri e mais do que rapidamente o conduz ao consultório principal, onde o doutor já o aguarda. Alguns berros, barulhos e minutos depois (40, lógico), o homem sai do consultório. Sorri e agradece, apresentando-se e beijando a mão da secretária que, perplexa, jura ter ouvido o, agora gentil cavalheiro, Sr. Hardman cantarolando alguma coisa enquanto seguia pelo corredor, escada abaixo.
Pontualmente, às 13 horas chega ela – mulher bonita, cabelos e olhos negros. Apesar do ar suave e sorridente, há algo muito assustador naquela mulher e não é apenas a grande borboleta negra tatuada no rosto, "Coisas assim são comuns por aqui. Deve ser maquiagem, só pode!" pensa a secretária, enquanto a paciente caminha serelepe e entra direto no consultório, sem bater à porta e nem mesmo ser anunciada!
Consulta muito breve, menos de 15 minutos e ela sai, com a mesma graça assustadora com a qual entrou.
Dr. Shoji dá por encerrado o expediente. Algumas pessoas orgulham-se de ter um relógio biológico apurado – ele poderia se gabar por sua agenda de consultas mental; apesar de não trabalhar com hora marcada, inexplicavelmente sempre sabe quantos, quando e quais pacientes atenderá por dia. O que torna a Srta. Menial tão obsoleta quanto um porta guarda-chuvas no verão, porém, além de imprescindíveis em um consultório respeitável, ambos são belos objetos decorativos – sobretudo a Srta. Menial!
— Oh, como eu nunca havia reparado em tamanha formosura... a palavra gostosa lhe é bem apropriada! - São tantos os adjetivos que lhe vêm a mente, tantos os atrativos que lhe pulam aos olhos, hormônios circulando em abundância e respostas fisiológicas previsíveis, que o Doutor nem mesmo percebe a atitude gerada. Se vê surpreendido... Ainda mais surpresa fica a Srta. Menial:
Ela se assusta com a brutalidade com a qual ele a toma, grita conforme seu cabelo é puxado e geme quando seu corpo é jogado violentamente sobre a mesa. Teme, reage brevemente, mas não desgosta... e como boa e servil secretária, logo reconhece o ato como algo "imprescindível para o bom relacionamento profissional, que já durara... Quantos anos mesmo?"
Após esta pequena recreação, Dr. Shoji alinha o paletó, pega a valise, despede-se cordialmente da tão gentil secretária e segue, tranqüilo e sereno, até sua residência, onde é esperado para o almoço familiar. Entra na impecável casa, beija – na testa – a impecável esposa e passa a mão na cabeça de seus filhos, já sentados à mesa.
A refeição cheira muito bem e tem uma aparência espetacular, porém não lhe apetece; nada ali lhe apetece, e ao contrário da comida, o cheiro e a aparência de sua esposa lhe são repugnantes. E mais uma vez ele é tomado por um impulso febril, incontrolável e violentamente esmurra a esposa na cara. A força é tamanha que a arremessa ao chão.
Abatido o primeiro obstáculo, ele olha em volta, ansioso à procura da próxima vítima - o filho corre para o quarto enquanto a pequena esconde-se debaixo da mesa. O que lhe traz um grande alívio:
— Ah, nada como filhos bem treinados! Filhos e cachorros! Que maravilha! - E dizendo isto se levanta e vai até a geladeira em busca de uma refeição decente
— Hm, sorvete! Querida, onde guardamos os biscoitos? Ah, sua estabanada, o que faz no chão? Vamos, deixe-me levantá-la, assim, pronto! Você está tão... Abatida, deveria retocar a maquiagem, como faz a Srta. Menial! E você menina, isso são horas pra brincadeiras? Saia já debaixo da mesa! Crianças...
Ele se senta confortavelmente em sua poltrona favorita e saboreia a agradável e deliciosa refeição de sorvetes, biscoitos e confeitos coloridos!
— Ah, que belo dia de trabalho! Quanta satisfação!
Ao terminar a refeição sente um enorme vazio – certamente não vem do estômago – mas sim o tipo de vazio que um artista sente quando percebe sua obra incompleta. Isto o inquieta.
Ele percorre os cômodos da casa, procurando por "sabe-se lá o que". Confere atentamente sua agenda mental e de repente percebe o que esquecera: "Obrigações profissionais, claro!"
Ele sorri e caminha até o banheiro; abre o armário e de lá tira uma caixa de madeira relativamente antiga que ele nem lembrava possuir, mas soube exatamente onde encontrar. Abre a caixa, confere o conteúdo e sorri satisfeito por estar intacto.
Olha-se no espelho e diz para si mesmo:
— Só mais este trabalho e meu dia estará completo!
Recorda do que lhe dissera a última paciente - sigilo profissional - olha-se ao espelho, sorri...
40 segundos depois e... Pronto: missão cumprida!
O filho ouve o tiro, a filha encontra o corpo, a mulher limpa o sangue: Chão, parede, teto e espelho.
E a secretária cuida dos detalhes:
— Alô, é do jornal? Sim? Olá, aqui é a Srta. Menial, eu gostaria de modificar o anúncio do Dr. Shoji – não, não, a página está ótima! Isto, obituário mesmo, só precisamos de uma leve alteração no texto, assim:
"Para que o seu nome não esteja aqui amanhã, o meu está hoje – DR. KAGAMI SHOJI - amado pai e esposo"
— Sim, é só isso. Arigatou gozaimasu.