O estorvado
Poesia o cacete. É isso mesmo, isso não é poesia, nem uma trova, nem conto, não é nada. Pensava nisso enquanto me deixava levar por aquele trem até meu trabalho.
O que? Cacete é palavrão? Então procura no dicionário o que significa, vai lá, procura. Não nestes dicionários de hoje em dia, mais sim naqueles dicionários de trinta, quarenta anos atrás. Eu já falei.
Sabe qual é a minha imagem agora? Como eu me vejo?
Vejo-me assim oh... Olhos miúdos de cansaço e sono, a parte branca dos meus olhos está totalmente avermelhada por causa do sono e do cansaço.
Quando não dormimos o suficiente, os vasos dilatam e dão esta aparência avermelhada.
Quer saber? Eu me sinto como Jesus na cruz, braços abertos, suando, e a leve impressão de que tudo isso esta sendo completamente inútil, na janela do trem ao qual eu viajo o meu reflexo é assim. Cinco horas da manhã, de braços abertos. É assim que me vejo meu amigo, como Cristo de braços abertos, crucificado e acreditando ser tudo isso em vão, o coração estraçalhado pela ponta da lança assassina de todo este poder infernal, afinal de contas, são cem mil dizendo o que seis bilhões devem fazer, usar, amar ou odiar, isso sufoca a todos. O trem lotado, muito lotado. A três bancos adiante de onde me encontro uma garota sentada, pessoas comuns. Sinto-me assim; igualzinho a marmita que carrego a tiracolo, uma camada de feijão por baixo, (cinco colheres), uma camada de arroz no meio, (seis colheres), e um ovo frito por cima. Minha mulher esclarece para as crianças que as colheres são contadas para o controle das calorias e consequentemente, o controle da obesidade, e isso é o que a patroa diz, aí esta dito.
Ahh... Aquela garota sentada a minha frente, a uns três metros de distancia, como eu gostaria que fosse ela a se esfregar atrás de mim, tenho até medo de olhar para trás. E se for homem? O problema esta em eu não poder fazer nada, não consigo sair deste maldito lugar, só daqui a quatro estações quando o trem esvaziar. Minhas crianças, o que eu não daria para que elas tivessem um amanhã um pouco melhor, minha vida é assim, me sinto igual a minha marmita depois de um infinito movimentar, de um infinito adernar. Imagina as camadas misturadas, aquela miscelânea toda envolvendo o ovo frito? Então, é assim que eu me sinto, ou melhor, eu sou assim. Uma miscelânea de arroz e feijão envolvendo um ovo frito.
Pô, aquele comercial de margarina que assisti ontem a noite na TV. Que comercial sensual, sexi ao extremo, me deu vontade de comer pão com margarina, ou que seja, apenas margarina.
No trem é assim, o único movimento é para os lados, por isso a marmita mexe muito, o ovo não, o ovo fica no meio... Protegido, protegido e frito.
Victor Hugo não fez apologia à miséria. Ele denunciou uma situação conflitante. E conflito é o que mais existe nas relações humanas, a realidade é esta, ninguém escuta mais ninguém. Já reparou?
Quem é consciente não encontra eco às suas palavras, não encontra eco aos seus argumentos consistentes. Meu pensamento é assim, acontece através de quadros, talvez seja por causa do trem, esta janela a minha frente, só vejo o meu reflexo quando o trem entra em um túnel escuro, aí sim me vejo no vidro da janela, iluminado pela parca luz do vagão, o resto da viajem são apenas pensamentos, quadro após quadro. Quando me vejo, vejo meu coração sangrando. Neste momento me vejo crucificado, Cristo morreu naquela hora e a assassina foi a ponta da lança romana.
Os dormentes podres da linha do trem. Será que são eles os verdadeiros responsáveis pelo
adernar dos vagões? Então, ninguém nunca explica nada, é por isso que todas as pessoas são tão tristes quando viajam de trem, é este balançar, este enjoativo balançar e este nada explicar, e este som modorrento das rodas passando nas emendas dos trilhos, as rodas passam menos o tempo. Tudo é uma gloria efêmera, tudo me parece um jan de la foice, ou qualquer fogo-fatuo louco e aterrador, sinônimo de toda experiência inexplicável.
Bang, bang, não foram tiros, foram flashs de luz, que, iluminando meu rosto, mostraram um sorriso vítreo no vidro da janela, um esgarçado sorriso apareceu em meu rosto amarelado, pálido, pudera, estou perdendo sangue pela lacerarão que foi aberta em meu peito, o sangue jorra, pensamento, flash, a dor nos braços abertos, a câimbra nas mãos, conseqüência do forte segurar no balaustre do vagão, tudo inútil. Para onde estou indo? Será que faço parte de alguma estatística de movimento migratório? Será que habito uma cidade dormitório? Onde posso me incluir? Será que posso me incluir em alguma estatística ou grupo? Ou faço parte apenas de um nada? De um vazio de existência ou marginalizado? Ou não passo de um pestilento sem desodorante na axila?
Pensando bem eu queria fazer parte do comercial de margarina que assisti ontem, aquilo sim é vida, casa luxuosa e ricamente mobiliada, limpíssima, mulher lindíssima, filhos belíssimos e risonhos, inteligentes, sempre um casal, também sempre um cachorro ou um papagaio comendo margarina sentado à mesa.
Refletido no vidro da janela me vi protagonizando aquela bela historia, eu acordando com o sol a pino, os raios entrando pelas janelas, o quarto todo branco, minha mulher me acordando com beijos, sorridente, espirais de café contorcendo qual uma dança do ventre no ar ao sair do coador, a mesa posta com frutas, bolos, mais eu queria mesmo era a margarina, apenas a margarina, eu de roupão macio, comendo margarina e beijando minha mulher.
As luzes se apagaram na estação, talvez uma falha na rede, minha imagem refletida na janela, ao meu redor dezenove pessoas disputavam comigo o meu metro quadrado. O sentimento que nos imobiliza neste metro quadrado do trem, é que estamos com os pés chumbados. Como gostaríamos de ser igual ao boi voador da letra do Chico, ele sim, voava feliz pelos céus de Olinda, independente da proibição e perseguição do poder público, hoje em dia não, os únicos que podem voar são os políticos com seus carrões poderosos e voadores.
É assim todos os dias, mulheres, homens, crianças, jovens, adolescentes operarias, anciões.
Como saindo das paredes do trem ouço o som de uma válvula sendo acionada hidraulicamente, nem todas as portas fecharam, o trem foi deslizando sobre os
Trilhos, a principio vagarosamente, as luzes da estação foram acesas novamente e começaram a ficar para traz.
Pensei. “A merda deste trem levará a todos, direto ao ponto de queda do avião da Air France, no meio do atlântico”.
O que?
Merda é palavrão?
Não é não excelência, merda é apenas o substrato d’aquilo que somos.