A SAGA DO ZÉ DO MATO PARTE III
MISSÃO CUMPRIDA EM VULVUS
por Alberto Carmo
Os anos passados em Vulvus foram prazerosos e férteis. Zé do Mato deixou por lá uma penca de filhos e filhas de centenas de mães. Tinha até fieira incontável de netos. Missão cumprida, a saudade da terrinha bateu forte e Zandri não se apôs ao seu pedido de retorno. Foi preparado e logo perdeu a consciência. Zé foi deixado na beira de uma estrada, bem no trevo que levava
à sua cidade. Foi andando os poucos quilômetros até a entrada. Embora já sentindo um pouco o peso da idade, ainda estava em boa forma. No caminho, pensava nos amigos, na mulher. Será que ainda estavam vivos? Como estaria a cidade depois de tanto tempo?
Assim, perdido em lembranças, chegou ao lugarejo.
Havia grande confusão na porta da prefeitura. Uma multidão revoltada gritava impropérios ao prefeito, que estava protegido da fúria no meio de uma roda formada pela guarda municipal. Zé aproximou-se de uma das pessoas e perguntou: - O que está acontecendo?
- Um salafrário sumiu com o dinheiro do salário dos funcionários e o povo quer linchar o prefeito! - respondeu um senhor, cuja aparência não era desconhecida de Zé. Nosso amigo teve um sobressalto. Aproximou-se dos policiais e deu uma espiada. Meus Deus! - pensou. Lá estava o cunhado, mais assustado que onça acuada, tentando se desviar da chuva de ovos e tomates que a turba jogava-lhe nas fuças.
- Diacho! Isso aqui não está me cheirando bem. Não é possível! - e começou a andar no meio da multidão. Aos poucos, a memória foi-lhe aclarando e já não tinha mais dúvidas. Ali estavam Zé Piguinguinha, seu velho parceiro de pescarias, e Chiquinho Piúva, o barbeiro, e Maricotinha das Saias, a viúva que era mais generosa que padre em dia de esmola. E o cônego Leite, ele próprio também estava ali! Todos do mesmo jeito daquele longínquo dia em que havia sido raptado por aquelas ninfomaníacas siderais.
Os olhos de Zé começaram a rodar mais que bolinha numerada em rifa de quermesse, e ele teve um colapso ali na calçada mesmo. Deu tamanha cabeçada na guia que foi levado às pressas ao posto de saúde. Quanto tempo lá passou é um mistério. Quando voltou a si, não podia se mexer, nem abrir os olhos. Mas conseguia escutar. Percebeu que estava no leito de algum hospital ou coisa assim. Um diálogo era travado ao lado de seu leito.
- Parece que está nas últimas, coitado do velhinho! - dizia uma voz feminina.
- É melhor chamar o Dr. Bicudo! - disse outra. Zé estava num mato sem cachorro. Tentava falar e não conseguia, tentava se mexer e nada. Só ouvia tudo. Logo, Dr. Bicudo, que, diga-se de passagem, fizera boas parcerias com Zé no dominó que jogavam no bar do Juca, chegou. Aperta aqui, aperta ali, põe o rosto perto do nariz do Zé, e dispara:
- Acho que não passa de hoje! - arrematou. Alguém conseguiu descobrir quem é, de que cidade, se tem algum parente?
- Nada, doutor! Nenhum documento, nenhum papelzinho. Estava com os bolsos mais vazios que o do meu marido na véspera do pagamento que, aliás, aquele vigarista do Zé do Mato fez sumir! - esbravejou a enfermeira.
Se pudesse, naquele instante Zé estaria tremendo mais que vara verde, tamanho pavor e confusão que tomaram conta dos seus pensamentos. Mas não podia mexer nem o dedinho do pé, só escutar apavorado o destino que lhe aguardava. Se não se curasse rapidamente, ia desta para uma melhor ao vivo e sem cores, só escuridão. Se lhe voltassem os movimentos, o que faria ele, agora já velho, no meio da parentalha e dos amigos ainda jovens? Fora o problema de que, se fosse reconhecido, ia apanhar da multidão feito cachorro louco.
Por alguns instantes, xingou Zandri mentalmente, de vagabunda a piranha. Aquela tarada tinha que me aprontar uma dessas? Me trazer assim velho pra mesma época que me levou daqui? - desabafou em gritos surdos que só seriam ouvidos por algum telepata ou pai-de-santo e ... Pai-de-santo! - repetiu o pensamento.
Lembrou-se do velho Jacó, que tinha um terreiro lá pelas bandas do Barranco Fundo. Ele seria sua salvação, com certeza!
Zé começou a rezar feito beata solteira pedindo marido a Santo Antonio. Eram preces fervorosas, como: - Meu Santo Agostinho, me tira desta arapuca, não deixa eles me enterrarem vivo feito um minhocuçu! Tira minha vaca deste brejo, meu santinho!
Não sei se por conseqüência dos apelos e da fé que, aliás, não era o forte do Zé, que só se lembrava dela na hora do aperto quando aprontava das suas, ou se por alguma transmissão telepática vinda de Vulvus, enviada por Zandri, que seria eternamente grata por ter desfrutado do Zé mais que pivete em fábrica de bala pelos anos que lá esteve cumprindo a estafante tarefa de dar uma atrás da outra.
Seja por uma ou outra razão, o que importa é que as coisas começaram a melhorar para o nosso desafortunado pilantra.
- Doutor, não é melhor chamar o cônego para dar a extrema-unção a este infeliz? Não é justo enterrar o coitado sem encomendar a alma dele! - disse a enfermeira. Neste instante vital, Zé cruzou os dedos mentalmente. E cerrou os dentes, também mentalmente, claro.
- Mas o cônego não pode vir agora. Está tentando acalmar os ânimos do povo lá na Prefeitura. Se ele sair de lá o prefeito vai virar paçoca de amendoim! - retrucou o médico.
- Mas alguém tem que fazer alguma prece por este velho antes que ele vire presunto! - argumentou a enfermeira.
- Alguém podia chamar o velho Jacó para dar uma assistência a este destituído! Não sabemos mesmo que religião o velhinho professa, então vai de passe mesmo! - completou o médico.
Zé, se pudesse, daria urras. Mas não podia, então limitou-se a enviar dardos telepáticos a torto e a direito: - Chama o velho logo, chama o velho logo, seus capiau mais molenga que cágado subindo escada!
Logo, Zé ouviu o toque-toque da bengala do velho Jacó se aproximando. A enfermeira colocou uma cadeira ao lado do leito do moribundo, e o velho Jacó começou a sussurrar e a mexer o charuto, que Zé sentia o cheiro, feito maestro a reger a orquestra. Zé nem se importava com as cinzas salpicadas em seu nariz. Se não estivesse naquele estado, já teria dado um espirro que arrebentaria com as vidraças. Mas não podia, então recebeu o polvilhar sem pensar um pio.
Zé não percebeu, mas o preto velho de repente ficou mais branco que vela em procissão. E pediu aos presentes na sala:
- Ocês me deixa sozinho com o pobre, faz favor! Logo após ouvir a porta se fechar, Zé sentiu um bafo de onça se chegando e ouviu o seguinte pito ao pé do ouvido:
- Então é vancê, Zé do Mato, seu safado! Deus lhe castigou rapidinho. Vancê tá parecendo mais véio que eu, seu ladrão desarmado! - disparou o caboclo.
O velho Jacó até se compadeceu ao ver o brusco envelhecimento do antes garboso caçador de onça. Mas algum corretivo havia de ser aplicado ao traquina. Calou-se e ficou matutando sobre o castigo que daria ao pobre Zé. Enquanto isso, Zé ia contando, por espírito ou mentalmente, pouco importa, o triste episódio de que fora vítima. Afinal de contas, havia caído no conto do vigário que a amante lhe passara. Haveria de merecer pena leve. O preto velho pensou, pensou e repensou. Por fim, depois de consultar seu santo de confiança, preparou-se para sentenciar o larápio.
- Óia, seu dotô, o homi aqui tá vivinho da silva. Ele carece de uns passe e logo vorta ao normar. O sinhô me deixe mais uns minutinho com ele e despois mande ele lá pro meu barraco. A sós com Zé novamente, o velho mandou seu veredicto diretamente ao espírito do falso moribundo:
- Vancê escute bem, eu vô lhe trazer de vorta, mas vai morar comigo no barraco e ficar bem quietinho de sua situação. E despois que se arrependê do mar que fez, vou lhe ensiná a lida c'os espírito e vancê vai tomá meu lugar despois que eu morrê, que já tô véio demais e doente. E trate de obedecê, que bem que ocê merecia uma sova cum rabo de tatu!
Com efeito, não deu um ano e o velho caboclo foi ter com seus compadres no A lém. Mesmo depois da morte do velho Jacó, Zé nem se atrevia a descumprir o prometido ao caboclo que lhe poupara de virar isca de verme.Mesmo porque, todas as noites o velho vinha do Além e lhe lembrava o compromisso de fé:
- Vancê tá indo bem, Zé do Mato. E nem pense em se safar dessa, senão vai passá a eternidade contando minhoca debaixo do cemitério. E assim, Zé do Mato, outrora destemido caçador das pintadas e reprodutor interplanetário, acabou virando pai-de-santo.
MISSÃO CUMPRIDA EM VULVUS
por Alberto Carmo
Os anos passados em Vulvus foram prazerosos e férteis. Zé do Mato deixou por lá uma penca de filhos e filhas de centenas de mães. Tinha até fieira incontável de netos. Missão cumprida, a saudade da terrinha bateu forte e Zandri não se apôs ao seu pedido de retorno. Foi preparado e logo perdeu a consciência. Zé foi deixado na beira de uma estrada, bem no trevo que levava
à sua cidade. Foi andando os poucos quilômetros até a entrada. Embora já sentindo um pouco o peso da idade, ainda estava em boa forma. No caminho, pensava nos amigos, na mulher. Será que ainda estavam vivos? Como estaria a cidade depois de tanto tempo?
Assim, perdido em lembranças, chegou ao lugarejo.
Havia grande confusão na porta da prefeitura. Uma multidão revoltada gritava impropérios ao prefeito, que estava protegido da fúria no meio de uma roda formada pela guarda municipal. Zé aproximou-se de uma das pessoas e perguntou: - O que está acontecendo?
- Um salafrário sumiu com o dinheiro do salário dos funcionários e o povo quer linchar o prefeito! - respondeu um senhor, cuja aparência não era desconhecida de Zé. Nosso amigo teve um sobressalto. Aproximou-se dos policiais e deu uma espiada. Meus Deus! - pensou. Lá estava o cunhado, mais assustado que onça acuada, tentando se desviar da chuva de ovos e tomates que a turba jogava-lhe nas fuças.
- Diacho! Isso aqui não está me cheirando bem. Não é possível! - e começou a andar no meio da multidão. Aos poucos, a memória foi-lhe aclarando e já não tinha mais dúvidas. Ali estavam Zé Piguinguinha, seu velho parceiro de pescarias, e Chiquinho Piúva, o barbeiro, e Maricotinha das Saias, a viúva que era mais generosa que padre em dia de esmola. E o cônego Leite, ele próprio também estava ali! Todos do mesmo jeito daquele longínquo dia em que havia sido raptado por aquelas ninfomaníacas siderais.
Os olhos de Zé começaram a rodar mais que bolinha numerada em rifa de quermesse, e ele teve um colapso ali na calçada mesmo. Deu tamanha cabeçada na guia que foi levado às pressas ao posto de saúde. Quanto tempo lá passou é um mistério. Quando voltou a si, não podia se mexer, nem abrir os olhos. Mas conseguia escutar. Percebeu que estava no leito de algum hospital ou coisa assim. Um diálogo era travado ao lado de seu leito.
- Parece que está nas últimas, coitado do velhinho! - dizia uma voz feminina.
- É melhor chamar o Dr. Bicudo! - disse outra. Zé estava num mato sem cachorro. Tentava falar e não conseguia, tentava se mexer e nada. Só ouvia tudo. Logo, Dr. Bicudo, que, diga-se de passagem, fizera boas parcerias com Zé no dominó que jogavam no bar do Juca, chegou. Aperta aqui, aperta ali, põe o rosto perto do nariz do Zé, e dispara:
- Acho que não passa de hoje! - arrematou. Alguém conseguiu descobrir quem é, de que cidade, se tem algum parente?
- Nada, doutor! Nenhum documento, nenhum papelzinho. Estava com os bolsos mais vazios que o do meu marido na véspera do pagamento que, aliás, aquele vigarista do Zé do Mato fez sumir! - esbravejou a enfermeira.
Se pudesse, naquele instante Zé estaria tremendo mais que vara verde, tamanho pavor e confusão que tomaram conta dos seus pensamentos. Mas não podia mexer nem o dedinho do pé, só escutar apavorado o destino que lhe aguardava. Se não se curasse rapidamente, ia desta para uma melhor ao vivo e sem cores, só escuridão. Se lhe voltassem os movimentos, o que faria ele, agora já velho, no meio da parentalha e dos amigos ainda jovens? Fora o problema de que, se fosse reconhecido, ia apanhar da multidão feito cachorro louco.
Por alguns instantes, xingou Zandri mentalmente, de vagabunda a piranha. Aquela tarada tinha que me aprontar uma dessas? Me trazer assim velho pra mesma época que me levou daqui? - desabafou em gritos surdos que só seriam ouvidos por algum telepata ou pai-de-santo e ... Pai-de-santo! - repetiu o pensamento.
Lembrou-se do velho Jacó, que tinha um terreiro lá pelas bandas do Barranco Fundo. Ele seria sua salvação, com certeza!
Zé começou a rezar feito beata solteira pedindo marido a Santo Antonio. Eram preces fervorosas, como: - Meu Santo Agostinho, me tira desta arapuca, não deixa eles me enterrarem vivo feito um minhocuçu! Tira minha vaca deste brejo, meu santinho!
Não sei se por conseqüência dos apelos e da fé que, aliás, não era o forte do Zé, que só se lembrava dela na hora do aperto quando aprontava das suas, ou se por alguma transmissão telepática vinda de Vulvus, enviada por Zandri, que seria eternamente grata por ter desfrutado do Zé mais que pivete em fábrica de bala pelos anos que lá esteve cumprindo a estafante tarefa de dar uma atrás da outra.
Seja por uma ou outra razão, o que importa é que as coisas começaram a melhorar para o nosso desafortunado pilantra.
- Doutor, não é melhor chamar o cônego para dar a extrema-unção a este infeliz? Não é justo enterrar o coitado sem encomendar a alma dele! - disse a enfermeira. Neste instante vital, Zé cruzou os dedos mentalmente. E cerrou os dentes, também mentalmente, claro.
- Mas o cônego não pode vir agora. Está tentando acalmar os ânimos do povo lá na Prefeitura. Se ele sair de lá o prefeito vai virar paçoca de amendoim! - retrucou o médico.
- Mas alguém tem que fazer alguma prece por este velho antes que ele vire presunto! - argumentou a enfermeira.
- Alguém podia chamar o velho Jacó para dar uma assistência a este destituído! Não sabemos mesmo que religião o velhinho professa, então vai de passe mesmo! - completou o médico.
Zé, se pudesse, daria urras. Mas não podia, então limitou-se a enviar dardos telepáticos a torto e a direito: - Chama o velho logo, chama o velho logo, seus capiau mais molenga que cágado subindo escada!
Logo, Zé ouviu o toque-toque da bengala do velho Jacó se aproximando. A enfermeira colocou uma cadeira ao lado do leito do moribundo, e o velho Jacó começou a sussurrar e a mexer o charuto, que Zé sentia o cheiro, feito maestro a reger a orquestra. Zé nem se importava com as cinzas salpicadas em seu nariz. Se não estivesse naquele estado, já teria dado um espirro que arrebentaria com as vidraças. Mas não podia, então recebeu o polvilhar sem pensar um pio.
Zé não percebeu, mas o preto velho de repente ficou mais branco que vela em procissão. E pediu aos presentes na sala:
- Ocês me deixa sozinho com o pobre, faz favor! Logo após ouvir a porta se fechar, Zé sentiu um bafo de onça se chegando e ouviu o seguinte pito ao pé do ouvido:
- Então é vancê, Zé do Mato, seu safado! Deus lhe castigou rapidinho. Vancê tá parecendo mais véio que eu, seu ladrão desarmado! - disparou o caboclo.
O velho Jacó até se compadeceu ao ver o brusco envelhecimento do antes garboso caçador de onça. Mas algum corretivo havia de ser aplicado ao traquina. Calou-se e ficou matutando sobre o castigo que daria ao pobre Zé. Enquanto isso, Zé ia contando, por espírito ou mentalmente, pouco importa, o triste episódio de que fora vítima. Afinal de contas, havia caído no conto do vigário que a amante lhe passara. Haveria de merecer pena leve. O preto velho pensou, pensou e repensou. Por fim, depois de consultar seu santo de confiança, preparou-se para sentenciar o larápio.
- Óia, seu dotô, o homi aqui tá vivinho da silva. Ele carece de uns passe e logo vorta ao normar. O sinhô me deixe mais uns minutinho com ele e despois mande ele lá pro meu barraco. A sós com Zé novamente, o velho mandou seu veredicto diretamente ao espírito do falso moribundo:
- Vancê escute bem, eu vô lhe trazer de vorta, mas vai morar comigo no barraco e ficar bem quietinho de sua situação. E despois que se arrependê do mar que fez, vou lhe ensiná a lida c'os espírito e vancê vai tomá meu lugar despois que eu morrê, que já tô véio demais e doente. E trate de obedecê, que bem que ocê merecia uma sova cum rabo de tatu!
Com efeito, não deu um ano e o velho caboclo foi ter com seus compadres no A lém. Mesmo depois da morte do velho Jacó, Zé nem se atrevia a descumprir o prometido ao caboclo que lhe poupara de virar isca de verme.Mesmo porque, todas as noites o velho vinha do Além e lhe lembrava o compromisso de fé:
- Vancê tá indo bem, Zé do Mato. E nem pense em se safar dessa, senão vai passá a eternidade contando minhoca debaixo do cemitério. E assim, Zé do Mato, outrora destemido caçador das pintadas e reprodutor interplanetário, acabou virando pai-de-santo.