Ainda não
Num lugar bem alto, olhando para baixo, sentia alguma coisa se torcendo dentro de si. Era como se alguma coisa que morasse dentro dos muros de carne que abrigavam sua alma quisesse se lançar ao ar, não para voar, mas para estatelar-se no chão. O coração acelerava sempre que sentia isso. Um buraco frio se abria em seu estômago, e tinha que puxar o ar profundamente algumas vezes para controlar aquele ímpeto tão intenso, tão... irresistível.
Segurou com firmeza na grade do parapeito. Espichou o pescoço para frente, os olhos vagueando pela paisagem urbana demoradamente. Não sentia vertigem. Não sentia medo. Ao contrário: era uma vontade louca de sentir o corpo atravessando rapidamente os metros que o separavam do chão e sentir o impacto brutal ao fim do voo vertical. Àquela altura, a queda seria devastadora. Sua cabeça iria se arrebentar com a fragilidade de uma melancia madura. Imaginou-se batendo no calçamento, a casca partindo-se, a polpa esparramando-se pelo concreto cinza, as sementes volteando no ar como bailarinas voadoras, espalhadas pelo impacto como as pétalas de crisântemo a desabrochar. Sorria.
Sentiu o corpo se movendo, escalando a pequena barreira. Não ouvia voz alguma. Braços para trás, as mãos atinham-se com força ao corrimão que encimava a grade do parapeito. Pés bem plantados no terraço, inclinou o corpo para frente. Ali abaixo, pessoas. Não se pareciam com formigas. Detestava essa comparação. Clichê demais. Pareciam pontos. Pontos indiscerníveis pintalgando a paisagem de ferro, concreto e vidro. Pontos que iam e vinham movidos por uma força que se recusava a compreender. Ali em cima, observando-os, sabia que era diferente de todos. Não se julgava superior. Não tinha motivos para uma autoavaliação que o valorizasse demasiadamente em detrimento dos outros. Também não cedia a nenhum impulso inexistente de autocomiseração e, portanto, não se via como inferior. Era tão-somente diferente.
Uma lufada de vento agitou seus cabelos e sua alma. Ao longe, uma ave planava em círculos, olhos atentos nos seres estranhos que, como partículas desajustadas num sistema em desequilíbrio, moviam-se em ordem e sentido desconhecidos. Por mais que admirasse a liberdade altiva de um falcão como aquele, um carancho de bico curvo e penas cor de chumbo, nunca quis ser como um. Talvez nunca quisesse porque nunca realmente poderia ser um. Respirou. O rosto baixou-se lentamente, a visão abarcou a cidade tingida de alaranjado, morna e monótona sob o céu crepuscular de um outono irrelevante. Sentiu os joelhos dobrando-se pouco a pouco, as mãos deslizando pelo metal enrugado do corrimão do parapeito. A adrenalina correu o corpo, acelerando o coração, insuflando a coragem que lhe faltava. Os dedos abandonaram o parapeito. Como molas, os joelhos esticaram, projetando-o para frente. Suaves, seus pés abandonaram o estreito espaço no qual se apoiavam, e seu corpo lançou-se ao ar quente.
Era a liberdade perfeita. As contenções que agrilhoavam seu espírito reduziam-se a uma lembrança indesejada. O som de seu próprio corpo caindo, o ar deslocando-se por suas roupas, estalando o tecido a cada metro vencido de alto a baixo, não lhe dava medo. Rostos voltaram-se para cima. Rostos desconhecidos, rostos mesmos, todos saídos da mesma fôrma, paridos na mesma linha de montagem. Rostos de gente cujo nome não sabia, cujas histórias não lhe interessavam. Máscaras sem vida em sua passagem para a eternidade. As bocas se abriram, ocas, negras como o piche que corria em suas veias. O grito em uníssono cortou o ar como mil mariposas, brotando do chão e envolvendo-o tal qual uma lâmpada num quarto escuro. A dureza do chão dilacerando seu corpo precedeu a escuridão completa. Silêncio. A dor não passava de uma ilusão vã, uma encenação de fantoches para crianças retardadas. Havia apenas o Vazio. Ele era o Vazio.
O toque delicado em seu ombro o fez estremecer, emergindo de seus pensamentos e sua imaginação. Os nós dos dedos estavam brancos. A força com a qual segurava o corrimão do parapeito era exagerada. Lento, arrefeceu a pressão dos dedos, afastando as mãos. Moveu-os algumas vezes, atraindo novamente o sangue para as articulações de seus dedos magros. Olhou para ela. Seu aroma de alfazema era tão agradável quanto seus olhos de gazela, grandes, expressivos, olhos que o fitavam com um ar de interrogação que falava por si só.
- O que foi, amor?
Ele balançou a cabeça. Sorriu com suavidade, quase de modo acanhado. Levou a mão dela aos lábios e beijou-lhe o dorso dos dedos.
- Um devaneio, meu bem. Nada demais.
O sorriso dela, plácido, apaziguou-lhe a alma conturbada. Suspirou antes de deitar seus lábios nos dela por doces segundos. “Não”, pensou ao entremear os dedos da mão nos dela, “ainda não”. Satisfeitos com a vista àquele monumento da cidade, seguiram para o hotel com os outros turistas. Ônibus, hotel, banho, e, talvez, fazer amor antes do jantar.
Ainda não estava pronto. Ainda era humano demais.