Édipo e Jocasta
Édipo
A mesma quadrinha chula lhe martelava à cabeça; os mesmos versinhos ignóbeis que escalavraram sua adolescência o corroíam novamente. Não era o mau gosto daquelas palavrinhas quase ingênuas que o atormentavam, era a reabertura de antigas feridas, profundas e nunca cicatrizadas de todo; traziam aquele sabor amargo, a sensação desagradabilíssima na garganta, a opressão no peito, o desconforto e o cansaço no corpo inteiro.
Toda aquela desgraça desabava-lhe de imediato sempre que ouvia a quadrinha, ou mesmo quando não a ouvia e mesmo assim de algum modo ela se desencavava de algures nas profundezas de sua mente. Nessas ocasiões tentava afogar a musiquinha hedionda, enterrá-la sobre algum peso enorme, mas só o conseguia com muito esforço e esgotamento, não podia tolerar o esmagamento angustioso causado pelas atemorizantes e monstruosas palavras, pois era assim que ele as ouvia, ainda que não passassem de um mero divertimento pueril.
Mas aquelas palavras eram ouvidas por ele sem o seu cunho metafórico, transformavam-se em um pesadelo de formas quiméricas e bizarras, as mesmas que os atemorizavam desde muito jovem, pois tais palavras tinham o poder de fazê-lo voltar quase à infância, ao começo da tragédia. Era como se por encantamento ele voltasse por inteiro ao passado, aos momentos de angústia profunda sob o escárnio dos coleguinhas de classe, a cantoria repetida e repetida, os risos e gritos agudos da turba, e a incompreensão e a confusão resultantes.
Naquele momento o pacote de angústias lhe abatia novamente transportando-o uma vez mais a outros tempos, enquanto o maldito assovio era ouvida à distância, pois eram necessárias apenas meia dúzia de notas musicais para que irrompesse o brutal conjunto de sensações e imagens que aniquilava sua alma.
Em sua cabeça o som torpe do assovio preenchia-se com as malditas palavras: cu da mãe tem dente... .
Sobre a inveja
A inveja carrega sempre consigo uma armadilha que acaba por sugar por inteiro a vida daqueles que por ela se deixam agarrar; torna-se especialmente perigosa, quase inexpugnável, quando passa a ser por si só uma meta: a inveja pela inveja; invejar e ser invejado; a inveja que embebe por completo o mundo em torno e que faz com que toda a vida seja dirigida por ela, cuja meta é apenas a de causar mais inveja. É desse modo que a inveja se alimenta e cresce, além disso, o sentimento infame se reproduz em torno, gerando mais inveja ao redor, corroendo todas as coisas até que nada mais exista por perto que não esteja permeado e carcomido por ela.
Por vezes tal miséria se abate sobre gente ainda muito nova, que direcionada por guia tão desnorteador, passa a tomar por alvo exclusivamente o objeto de inveja.
As mulheres assoladas por tal calamidade fingem muitas vezes buscar a beleza, a elegância, ou qualquer outra meta usual; muitas delas parecem mesmo crer que buscam tais atrativos, quando o que querem de fato é apenas causar inveja, e frequentemente conseguem o seu intento, gerando enorme inveja em outras mulheres que são como elas próprias, num espetáculo insano que poderia ser até divertido não fosse tão horrendo. Digo que seria divertido, pois enquanto fingem buscar a elegância, a beleza, ou suas outras pretensas metas, perdem-se por completo. Uma vez guiadas e cegadas pelo sentimento nefasto que as corrói, não sabem o que é o belo, nem o que é a elegância e nem o que é, de fato, qualquer outra coisa que não seja a inveja, e são levadas assim ao extremo oposto de feiúra, deselegância e de outras qualidades repulsivas em uma tragicomédia deprimente e profunda.
Mas, finalidades e meios são por vezes coisas tão confusas e imbricadas que se confundem e se embaralham, e a inveja costuma causar, entre tantos outros males, uma espécie de cegueira que faz com que apenas o objeto de inveja possa ser visado, e acabam por deixar o ser invejoso como que sem rumo, em meio a um emaranhado de objetivos vãos que o conduz a esmo por toda a vida, numa busca reles e fútil; e quando tais objetivos, mais que fúteis, são malévolos, compõem uma vida desgraçada e nefasta, tanto para si, quanto para os que se lhes aproximam, de modo que a frivolidade extrema de suas ações hediondas acaba por se transmutar em algo ainda pior.
No entanto, a tais mulheres nada disso importa, já que o que lhes interessa é apenas serem invejadas. E assim o hediondo sentimento se alimenta de si próprio e cresce mais e mais à medida que gera inveja nas amigas, que lhe retribuem espicaçando de volta a inveja que sentem.
E é assim que se alimenta e cresce o sentimento podre e cáustico que corrói tudo ao redor e até a si mesmo; emoção asquerosa e vil.
Jocasta
A inveja; poço de inveja.
Fora desde a infância corroída pela mais profunda inveja. Quis ser invejada; quis sempre ser invejada, e essas poucas palavras eram suficientes para descrever, do início ao fim, sua vida tão lamentável quanto mesquinha: invejar e ser invejada.
Os sentimentos ácidos e corrosivos a haviam agarrado quando muitíssimo jovem, de tal modo que não se lembraria de algum tempo em que a inveja não fosse a chama flamejante a guiar todos os seus caminhos, e foi sob tal luz que bem nova decidiu que seria chique e poderosa, embora o que quisesse fosse tão somente ser invejada, sem que nada mais lhe importasse, e nunca se enganou em acreditar que ser chique e poderosa pudesse ser sua meta; de si para si, e guiada pela própria inveja, sempre teve muito claro que seu desejo e finalidade na vida era causar inveja, e qualquer ato que esboçasse em todo momento de sua vida consistia apenas num meio para atingir sua finalidade última: a de causar inveja, embora seja certo que algumas de suas ações mais vis tenham tido como finalidade apenas abrandar sua própria inveja, que em certas ocasiões era tão aguda e extrema que se fazia insuportável.
Por tudo isso não surpreendia que sua deselegância fosse tão profunda, e que sua pouca beleza superficial nunca conseguisse encobrir a feiúra extrema e corrosiva que tentava em vão encobrir. No entanto, nada disso tinha significado em sua vida; o que lhe interessava era a inveja.
E houve o dia em que se deparou com a amiga que ostentou para Jocasta um homem muito jovem, e como de costume a inveja lhe aguilhoou alma. Mas bem ali ao seu alcance estava o jovem Édipo; vagava cega de inveja quando envolveu seu próprio filho e o teve para si, acreditando poder com isso causar inveja, enquanto mais uma vez só gerava a podridão nefasta que corrói e corrompe.
É com asco que deixo Jocasta imersa na putrefação que ela mesma expele e que é o alimento de sua própria alma, enquanto nutre a inveja infinita que a alimenta e a destrói.