Anel de Fogo
“Eu caí num anel de fogo flamejante
Eu fui caindo, caindo, caindo
E as chamas ficaram maiores
E isso queima, queima, queima
O anel de fogo
O anel de fogo”
- Johnny Cash
As chamas aproximam-se na medida em que o vento sopra. Meus olhos brilham o reflexo alaranjado; a fumaça da grama seca carbonizada tenta asfixiar meus pulmões, mas a noite estrelada e seu ar puro ainda predominam sobre mim. Só não sei durante quanto tempo.
O anel de fogo se estreita.
Tento em vão me desprender da cadeira. As pernas dela estão completamente enterradas no chão, e eu estou amarrado firmemente, numa complexidade de nós impossíveis de serem desfeitos. Olho para os céus, pedindo clemência divina. Um milagre, por favor. Faça um querubim descer dos céus e me desprender daqui, é tudo o que peço. Depois rio de mim mesmo. Por que apelar agora, se nunca acreditei em Deus? Sou uma porra de um hipócrita, é isso o que eu sou.
O vento sopra. Sei que ele é frio, mas tudo o que sinto é o calor das chamas aproximando-se. O cerco está se fechando sobre mim.
De todas as formas de morrer, nunca pensei em alguma coisa como essa. Pensei em morrer com uma bala no peito, um ataque do coração, um suicídio ultrarromântico e dramático, ou quem sabe um assassinato que intrigaria os investigadores – todo aquele lance à la Agatha Christie. Nunca pensei em morrer assim, preso e incapaz, sentado em uma cadeira sem pernas, tentando inútil e pateticamente me desprender. Esperando o fogo consumir minha pele e meus ossos, numa agonia dolorosa que duraria muito mais do que eu poderia imaginar.
Não, eu não podia morrer dessa forma.
As palavras dela voltaram a assombrar meus pensamentos: “sua morte será o pagamento daquela que você causou”. A voz havia sido firme e decidida, com ódio implícito em cada nota. A desgraçada me colocou aqui e depois ateou fogo ao campo. Desculpa perfeita: preparar o solo para a plantação. A filha da puta nunca plantara sequer feijão em algodões, mas essa é a prerrogativa de uma filha de fazendeiro. Ela tinha o ódio necessário para cometer um crime. E eu, o que tinha?
Dúvida, culpa e medo.
Dúvida: por que tanto tempo depois? Não me orgulho do que fiz na época de moleque, mas sei que isso não é justificativa. Mas seis anos depois? Os fantasmas ainda assombravam meus pensamentos, mas eu poderia pensar em qualquer outra coisa. Poderia listar uma infinidade de nomes inimigos, mas ela não estaria nem entre os cinquenta primeiros. Na verdade, ela não estaria na lista de forma alguma.
Culpa: a morte de Luciana. Tomo-a completamente para mim; sei que ninguém mais pode se responsabilizar pelo que aconteceu. Coisas da vida, alguns diziam para mim no dia do enterro – estava tão tonto que nem mesmo sei como lembro –; outros diziam que eram fatalidades, coisas que a gente não podia prever. Mas eu sabia que estavam mentindo. Parecia que eu podia ouvir o que cada um pensava. Cantavam um coro silencioso: ASSASSINO, ASSASSINO, ASSASSINO. A imagem da arma disparando acidentalmente passava em loop na minha cabeça. O tiro, o cheiro de pólvora, o calor do sangue respingado no meu rosto. O tiro, o cheiro de pólvora, o calor de sangue respingando no meu rosto. O tiro...
Medo: apesar do fogo, não tinha medo da dor ou da agonia, nem mesmo da morte. Tinha medo do encontro com Luciana, que eu sabia ser inevitável. Medo do olho no olho, da forma como ela me encararia. Estou com medo de uma alma aterrorizada.
Meus pais e parentes suportariam a dor da minha perda: não seria a primeira nem a última. Mas eu não suportaria encontrar Luciana e tentar me justificar. Ela tinha mais do que amor pela vida: tinha tesão. E eu, como um ceifador inconsequente, simplesmente tirei esse direito dela. Não importa se acidentalmente ou não, o meu fantasma particular sempre estará sussurrando verdades inconvenientes em meus ouvidos. Não poderia me perdoar, mesmo que tivesse esse direito.
O anel agora é estreito. Começo a sentir o suor escorrer por baixo da minha camisa. O ar me sufoca, piedoso, tentando me desacordar antes que o fogo faça seu trabalho maquiavélico de morte. Tento não sucumbir, mas é cada vez mais difícil manter-me acordado.
Então ela chega. Com um vestido de fogo e os cabelos lisos, voando sobre uma fênix com ao menos dez metros de envergadura. A ave pia estridentemente, fazendo meu sangue congelar, mesmo com todo o calor. Ela desce em meio à dança desenfreada do fogo. Suas pegadas fazem marcas no chão ainda imaculado.
Ela tem uma arma nas mãos. Meus olhos querem se fechar, minha respiração quer falhar, mas faço tudo o que posso para não desmaiar sem que ela fale comigo. Porém, ela não fala. Limita-se ao direito do silêncio, vendo minha expressão débil de incapacidade.
Quando ela puxa o gatilho, eu ainda tento – inutilmente – me justificar. Então as coisas acontecem numa velocidade incrivelmente rápida: a bala aproxima-se de mim, mas eu não tenho a capacidade de desviar. Vejo-a se aproximando e não movo um músculo sequer.
Então sucumbo, morto. O fogo toma conta do cenário, mas já não sinto dor. Não grito de desespero nem de agonia, para a decepção de minha algoz.
Ela carrega minha alma nas asas da fênix e sorri para mim. É quando percebo que ela ainda me ama.
Agora posso amá-la sem preocupações. Eu a matei e ela me matou. Estamos quites.