Amargo
O clima era soturno e o som era abafado. A banda no palco piorava a situação com uma apresentação horrível. Anabele estava entediada sentada à mesa esperando sua amiga. Pedro escorado no balcão do bar procurava um motivo para permanecer naquele lugar. Anabele deitou a cabeça sobre a mesa e desejou estar em casa. Pedro entornou o último gole de um destilado barato e se perguntou como chegaria em casa. Mais uma fuga em vão, outra noite perdida para os dois. Até seus olhares se cruzarem. Ela sorriu. Era aquele sorriso que todo homem deseja encontrar em uma noite úmida de inverno. Ele aproximou-se e chamou-a para dançar. Não se apresentaram porque já se conheciam, encontravam-se sempre no ônibus, olhavam-se, mas nunca trocaram uma palavra. Eles caminharam até a pista, mas não dançaram. Pedro encontrou muito mais que um corpo quente na noite, encontrara o tesouro que homens amargos como ele procuram pela vida toda cavando nas margens da solidão. Pedro encontrou alguém que lhe queria bem. Eles caminharam por toda a pista de dança, ora com beijos trôpegos, ora com afagos de orelhas. A noite já estava se despedindo quando ela disse que tinha que ir. Beijaram-se longa e profundamente mais uma vez. Aquele beijo que se pudesse, ele o eternizaria como uma foto e o carregaria no peito como um colar. Ela se foi.
Pedro esperou encontrá-la no ônibus, para perguntar seu nome, pedir seu telefone, dizer que se sentia salvo agora. Os dias passaram e ele não a encontrou. Semanas se formaram, os meses se amontoaram e os anos mudaram no calendário.Ele sentiu-se roubado.
Em uma manhã qualquer,Pedro folheia o jornal tomando um café enquanto seus filhos arruman-se para a escola. Quando ele chega à página final ele sente seu sangue gelar, Pedro reconheceu os lábios na foto do obituário. Ele sentiu descer pela sua garganta algo semelhante a um nó de pinho. Anabele não tinha mais o mesmo sorriso.