Depois da Tempestade

Estava nublado, com cara de chuva sabe? Só que mesmo assim, algo me dizia que as nuvens cinzas nada tinham a ver com concentrações perigosas de água, elas estavam escuras por outro motivo que eu ainda não tinha descoberto. Desviei minha atenção do céu para o chão. Eu estava sozinha, no meio do nada. Era um vazio imenso, como se fosse uma cidade sem prédio, nem pessoas. Não havia nenhuma construção no raio de quilômetros. Não havia nenhum ser humano no raio de quilômetros, a não ser eu. Aliás, eu estava com frio, o vento que movimentava meu cabelo, mexia com as nuvens no céu também, colocando-as perigosamente em cima de mim. Eu ouvi um raio e vi o horizonte pegar fogo. Fiquei com medo. Senti-me sozinha, desprotegida, exposta. Uma lágrima caiu sem eu nem perceber que meus olhos ardiam. Tentei gritar, mas não tinha voz; tentei me mover, mas minhas pernas não me obedeciam mais. Entrei em desespero, um desespero mudo e enlouquecedor, não havia nada que eu pudesse fazer pra mudar o lugar onde eu estava, eu precisava fugir, mas não conseguia, e então eu percebi que a minha única chance era deixar a tempestade vir, forte e arrasadora pra cima de mim, mas assim que ela passasse, eu poderia me libertar do martírio onde eu mesma tinha me colocado. E depois eu vi a luz, a esperança, dançando na minha frente, me convidando a experimentá-la.

Eu acordei ofegante. Era a segunda noite seguida que eu tinha o mesmo sonho, e dessa vez ele havia sido mais intenso que o anterior. Eu tinha certeza de que ele queria dizer alguma coisa, mas eu ainda não tinha entendido a mensagem, Bom, dane-se, a minha vida era uma droga mesmo.

Olhei para os lados, tentando me situar. Onde eu havia dormido mesmo? Ah sim, a festa da Carol... Tinha alguém dormindo ao meu lado no sofá, e eu não consegui definir quem era, talvez eu nem conhecesse, aquele cabelo castanho escuro não era familiar pra mim. Tentei me levantar, e me dei conta de que a minha blusa estava aberta e a minha cabeça doía. A sala girou e eu percebi que precisava vomitar. Levantei cambaleante, tropeçando nas pessoas espalhadas pelo chão, vi a Carol abraçada à uma menina que eu não conhecia e senti uma pontada de ciúme. Eu tinha precisado tanto da Carol ontem e ela nem me deu atenção devido a presença daquela estranha. Deu-me vontade de vomitar em cima dela, mas lembrei-me de como a minha amiga iria ficar puta da vida comigo, e resolvi correr pro banheiro. O problema foi encontrá-lo. Tudo ao meu redor continuava rodando, e foi difícil lembrar qual daquelas portas de mogno eram a do toalete. Experimentei uma e consegui acertar de primeira. Ajoelhei-me em frente a patente, ergui a tampa e meu súbito enjôo tomou conta de mim. Minha garganta ardeu com a bílis que passava por onde não devia passar, e a massa que misturava todos os tipos de bebidas alcoólicas conhecidas pelo ser humano tinha um gosto horrível quando chegou na minha boca. Vomitei mais por causa do asco que sentia daquela situação do que pelo enjôo em si. De repente senti alguém segurando meu cabelo pra trás e puxando a minha franja da testa. Essa mesma pessoa se agachou atrás de mim, como que para me acalmar, para que eu soubesse que ela estava lá, e eu vomitei até não ter mais nada no meu estômago. Fiquei ajoelhada ali, durante algum tempo, me sentindo uma idiota, fraca, ridícula. Não tive nem coragem de olhar pro lado para descobrir que me auxiliara no processo nojento que era a ressaca. Ressaca da vida. Até que ouvi a voz da Ângela como música nos meus ouvidos:

- Amor levanta, vem lava a tua boca, como eu vou poder te beijar com a sua boca assim? – era a cara da Ângela falar assim, até parece que ela iria querer me beijar de qualquer forma, eu era patética mesmo. Mas eu deixei ela transferir meu peso para o seu ombro e ajudar a me por em pé. Cambaleante, fui até a pia e abri a torneira, a água gelada bateu em mim como um remédio, a cura tão esperada. Lavei meus braços e a minha cara, levei um pouco de água até minha nuca e a senti queimando. Vergonha? Devia ser, era um reflexo comum do meu corpo quando ele sentia vergonha, me queimar na nuca. Porque a Ângela sempre tinha que me ver no meu estado mais deprimente? Porque ela sempre tinha que ser minha mãe, quando eu queria que ela fosse minha amante?

Ela conseguiu me arrastar até um quarto vazio e nisso meu raciocínio voltou a trabalhar. O que ela estava fazendo ali afinal? Quem a havia chamado? Quis falar mas minha boca estava muito seca. Entramos no quarto e ela me deitou na cama. Fechei os olhos e senti a força da gravidade me puxando de encontro aos lençóis, tudo girava até que eu senti sua mão na minha testa, na minha bochecha, nos meus lábios. Meus batimentos cardíacos aceleraram quando ela começou a desabotoar minha calça. Não tive forças pra impedir, só consegui murmurar algo como “não”. Terminou de tirar minha calça e deitou-se ao meu lado. Olhei pra ela e me lembrei do porque de ter me apaixonado por aquela menina. Só ela pra sorrir com sinceridade numa hora patética daquelas.

- Só to tentando te limpar, você tá nojenta e precisa de um banho.

- Eu não vou deixar você tirar minha roupa, não era assim que eu queria que acontecesse a primeira vez. – claro que não, eu, bêbada e vomitada não era nada romântico. Ela não era minha babá pra ficar me limpando, que deprimente.

- Ai, para com isso. Vai ser lindo de qualquer forma. Vou ter que me segurar pra não fazer besteira, só me concentrar em não te deixar cair. Vamos, vem pro banho.

- Não – eu ia fazer birra, não ia deixar ela comandar assim de inicio, eu tava fraca, bêbada, mas ainda não tava louca – só tomo banho se você vier comigo!

- Mas era essa intenção sua boba – ela disse, se levantando e tirando a blusa. Espantei-me, ela nunca tinha cedido antes, em dois anos de convivência, em dois anos que eu fui completamente apaixonada por ela. Porque isso agora? Pra tirar com a minha cara? Só porque eu tava de ressaca. Pisquei pra ver se não era alucinação da minha cabeça e quando abri os olhos ela já tirava a calça, quis me levantar para impedi-la, mas meus reflexos ainda estavam muito lentos, e quando me pus de pé, ela já estava só de lingerie.

- Não seja louca Ângela, você não precisa fazer isso. Não por caridade. Já deixei bem claro pra ti que te espero o tempo que for. Você não precisa fazer isso agora, não pode fazer isso agora!

- Não estou sendo louca, só acordei com uma puta vontade de te ver, telefonei pra sua casa e me disseram que você tinha saído cedo ontem, e ainda não tinha voltado. Telefonei pra cá e a Carol me falo que você tava dormindo com um cara qualquer ali no sofá, mas que tinha passado a noite toda falando de mim pra ele. Achei fofo. E vim pra cá. A porta tava destrancada, e quando entrei você tava correndo pro banheiro. Explicado? – enquanto ela falava, terminou de tirar minha calça e arrancou minha blusa, já pegava na minha mão para me arrastar pro banheiro do quarto, quando eu desabei no chão e comecei a chorar.

- Você tá mentindo pra mim. Você tá falando isso agora só pra me convencer, mas depois, você vai embora. Vai me deixar procurando por você em todos os corpos por aí. Que droga, eu me odeio por fazer você fazer isso. Pode ir agora, não me encha de esperanças frustradas, de sentimentos que não existem. Não agüento mais chorar por você guria. Não agüento mais te desejar tanto assim.

- Porque você nunca acredita quando eu digo que eu também te amo? Só porque ainda não tinha aceitado ficar com você? Só estou te mostrando que amor não é necessariamente sexo. Mônica, eu te quero, muito, já te disse mil vezes que o amor e o tesão que você sente por mim são recíprocos. Só que não era hora ainda. Agora é. Vem, que agora é a nossa hora.

Ela me pegou pela mão e eu me dei por vencida. Ao passar pela porta do quarto ela a trancou. Então ia ser privativo? Sorri internamente ao entrar no banheiro, olhando pro Box vi a banheira cheia de espuma e água e desejei me afundar naquilo. Quase corri como uma criança atrás de um doce quando ela me soltou. Ao colocar um pé dentro da pequena piscina que se estendia no chão, ela tocou meu braço e eu me virei. Era a primeira vez que eu a via nua. Meu coração acelerou e eu fiquei sem oxigênio. Mas isso não fazia falta. Mandei meu cérebro registrar aquele momento como um daqueles que merecem ser visitados nos sonhos. Ela sorriu ao perceber meu silêncio. – Não vai molha sua lingerie, a gente não tem outras. – E ela veio pra cima de mim, retirou meu pé da água e deslizou suas mãos pela minha barriga até encontrar a calcinha. Com calma ela também deslizou até o chão, retirando minha roupa intima como se ela fosse preciosa e merecesse total cuidado. Suas mãos estudavam minhas coxas em cada detalhe, e eu podia jurar que era só um sonho. Cada movimento dela era tão suave como uma pena, e me fazia até cócegas. Quando ela levantou novamente, suas mãos não se desgrudaram da minha pele. Deslizaram até as minhas costas e despiram-me do sutiã. Quando ele tocou no chão, ela me envolveu num abraço quente, de reconhecimento. Eu estava boba demais pra lembrar que tinha sonhado com aquele momento por eras. Minhas mãos eram hesitantes e meus movimentos incertos. Eu não sabia se era aquilo mesmo que eu devia fazer. Tinha medo de ser só uma vez, e depois ela desistir de mim. Tinha medo de nem estar acontecendo. Era só um sonho. Mas se era só um sonho, porque não aproveitar? Lembrei-me de tudo que tinha planejado praquele momento quando ele acontecesse. E comecei a agir.

Meus braços a tomaram com mais força pela cintura, e minhas mãos deslizaram por toda a extensão que alcançavam, senti tremores da parte dela e isso me deu arrepios. Girei-a de forma a deitá-la levemente na água espumada e sorri “fica aí, só vou demorar um segundinho”. Virei-me e corri pro espelho, achei um enxaguante bucal e anotei mentalmente de agradecer a Carol por ela ser tão higiênica. Ao terminar virei-me e percebi que ela me observava, sorrindo. Daquele jeito que só ela sabia fazer. Era uma pureza tamanha que até desprendia brilho. Andei lentamente em direção a banheira, queria que cada segundo daquele momento fosse mágico, perfeito. Ao entrar no Box, sentei-me do lado oposto ao dela, de modo que nossos pés e as nossas mãos se uniram. Fiquei sentido seu toque aveludado e observando seu rosto, ela me encarava como se me estudasse, como se pudesse enxergar minha alma.

Aconteceu tão rápido que eu nem percebi. Ela sorriu com um olhar de quem diz “já vi que vou ter que fazer tudo sozinha”. Ajoelhou-se na minha frente e minhas pernas deslizaram no meio das dela. Seus seios se acomodaram junto aos meus e sua boca se aproximou lentamente da minha. Nossos lábios se encontraram no meio de um suspiro, e deviam ter soltado faíscas de tão elétrica que eu estava. Ela roçou a boca na minha, e o beijo começou devagar. Quando minha língua finalmente atingiu o interior dela eu já quase atingira o clímax. Foi o melhor beijo da minha vida. Suas mãos deslizaram pela minha barriga e se concentraram nas minhas costas. Eu a segurava pela nuca, e os nossos movimentos formavam um ritmo nada parecido com o de nossos corações, completamente desacelerado, curtindo cada milésimo de segundo.

- Porque você me fez esperar tanto tempo por isso? – perguntei finalmente quando ela passou da minha boca para o meu pescoço.

- Porque você precisava aprender antes... – ela mexia os lábios ainda no meu pescoço, fazendo-me cócegas.

- Aprender o que exatamente? – puxei-a pra cima de modo a poder observá-la nos olhos.

- Que os momentos ruins só nos servem de degraus para atingir momentos bons. – e com um sorriso maroto ela me beijou novamente, me fazendo compreender que se não fossem os dois anos nos quais eu lutei por ela, nunca teria dado tanto valor ao nosso primeiro de muitos beijos.

Leticia Stinghen
Enviado por Leticia Stinghen em 19/06/2009
Reeditado em 12/07/2009
Código do texto: T1656642