é o seguinte Carol...

Por mais que seu pai esmurrasse a porta, quase a levando a baixo, Carolina não iria abri-la. Primeiro porque não queria que ninguém a visse naquele estado, muito menos o seu pai. Segundo porque não tinha nem condições de levantar da cama.

Revivia cada segundo daquela manhã como um “replay” instantâneo, por mais que tentasse bloquear sua mente, as imagens e palavras pronunciadas pelo ex vinham como uma tempestade no seu cérebro. Suplicava por paz, para que aqueles pensamentos sumissem, e rápido. Consumia cada vez mais rápido o cigarro, a maconha, e todo o álcool que conseguiu juntar em casa e levar para o quarto. A droga aparentemente não funcionava, e por mais que o quarto rodasse a sua volta, tudo que conseguia ver era ele, às dez horas da manhã, quando a puxará num canto para conversar:

- É o seguinte Carol... acho que não dá mais pra gente...

Ela suspeitara disso desde o início. Todas as suas amigas haviam lhe alertado “ele é um filho da puta, não confie nele, ele só quer te usar Carol, não caia no papo desse menino escroto”. Mas cega de paixão como estava, acreditou em cada mentira deslavada que ele pronunciava. Cinco meses atrás ela entrara num colégio novo, e por ser uma das garotas mais bonitas que o pessoal do colégio já vira, logo se tornou popular. Os cabelos loiros compridos e lisos formavam a moldura perfeita para a pele branca, os olhos verdes e as maçãs do rosto salientes que ela tinha. Era quase angelical. Além de tudo, sua personalidade humilde e querida conquistava todos com uma agilidade surpreendente. Em menos de três semanas todos no colégio já haviam se rendido aos seus encantos. Perguntaram-lhe de que colégio havia vindo e porque de lá havia saído, mas ela mentiu. Nunca iria contar para seus novos amigos que tinha sido expulsa da antiga escola por fumar maconha no banheiro. Estava decidida a começar uma nova vida, a situação já estava melhorando em casa, e ela fazia um esforço tremendo pra não precisar da erva. Porém sempre foi uma menina muito facilmente manipulada. E sua ingenuidade sempre foi grande demais para sua personalidade. Foi assim que se envolveu com a droga. Seu coração era muito mole, sempre a fazendo se deixar levar pelos papos daqueles por quem se apaixonava. E como se apaixonava fácil... sempre pelos piores tipos.

Foi exatamente assim no novo colégio. Em três semanas, junto com todos os admiradores apareceu ele: Vinicius. Um piá de prédio do terceiro ano. Já havia reprovado umas três ou quatro vezes, e mudava de colégio como trocava de roupa. Não podia se negar, o garoto era lindo. E a seduzira certinho. A pediu em namoro depois de um mês dela no novo colégio. E eles desfilavam pelo pátio de mãos dadas formando o casal mais invejado e admirado que aquela escola já vira. Suas novas amigas a alertaram, contaram todas as histórias que sabiam da vida do menino, mas Carolina não lhes deu bola. Estava loucamente apaixonada por um garoto cinco anos mais velho que ainda estava na mesma série que ela.

Não demorou nem duas semanas para ele tentar se aproveitar dela. Apesar de ter pelo menos um namorado por ano desde que estava na quinta série. Tinha a decisão fixa de só se entregar para o verdadeiro homem de sua vida. Mas ela estava cega de paixão, e não enxergava nada além de Vinicius na sua frente. Vieram então as propostas indecentes, as pegadas mais fortes, as passadas de mão em lugares impróprios. Ela não queria deixar, mas ele dizia que a amava, e ela se rendia facilmente.

Conseguiu em três meses. Numa manhã de maio, em vez de ir pro colégio, foi para casa dele. Ele nem esperou que ela entrasse para que tirasse toda sua roupa. E apesar de ter se sentido como um pedaço de carne exposta num açougue, ela se rendeu de bom grado. Acreditava em todas as palavras de amor que saiam da boca do cafajeste. Ele a jogou na cama e foi violento. Mas como ela nunca havia feito nada assim, achou que era normal. Doeu, não foi bom, não pra ela. Mas Carolina percebeu que Vinicius se divertia, então ficou satisfeita. Se ele estava feliz, ela estava também. Ele pediu pra não usar camisinha, com a desculpa de que doeria menos. Ela aceitou. Submissa. Ela sabia que estava tudo errado, mas não queria reconhecer, ele era o homem da sua vida. Seria ele e ela pra sempre.

Mas então começou a tortura. Nas semanas que se seguiram antes do caos total, ele ficou violento com ela. Machucava-a, humilhava-a na frente de todos. Ela perdeu o brilho, a cor, a esperança. Voltou a se drogar e as coisas pioraram em casa. Seus pais, separados, não conseguiam manter uma conversa civilizada sobre a situação da filha que logo soltavam a culpa em cima das costas um do outro. Ela não suportava mais se sentir tão sozinha. As amigas do colégio novo olhavam pra ela com aquele ar de “eu avisei” e as amigas do colégio antigo a tempos já haviam desaparecido até da sua vida virtual. A única pessoa que lhe sobrara era a amiga do Rio Grande do Sul que havia feio através de conversas on-line. Ela sabia de cada detalhe da sua vida, e Carolina via nela um porto seguro. Planejavam viver juntas um dia, serem felizes juntas. Ela era a única coisa que fazia Carolina se acalmar. Sua vida se transformara num caos, num beco sem saída.

Naquela manhã chegara no colégio arrasada, como habitualmente. Apesar de Vinicius tratá-la mal, ele era a única coisa que a ligava ao mundo real. Apesar de tudo que ele a fazia passar, ela achava que ele a amava ainda. Até aquela manhã.

- Não dá? Como assim não dá? – ela explodiu. Tinha desistido de tudo pelo menino, tudo, e agora ele vinha com esse papinho de “não dar mais”? – Você é louco? Olha só o estado que você me deixou, olha só a minha vida, você é a única coisa que me resta, você sabe disso. Não faz isso Vinicius, eu vou morrer sem você.

- Não faz drama Carolina, a muito tempo que você sabe que eu nem te curto tanto assim. Não agüento mais esses seus surtos, você me cansa garota, e nem é tão boa assim de cama... tão bobinha, você me cansa. – e ao dizer isso virou as costas e a deixou chorando. Foi como se um demônio possuísse a menina. Trancou-se no banheiro até a hora de sair do colégio. Não olhou pra ninguém, não se despediu de ninguém. Apenas abaixou os olhos e andou, correu até em casa. Subiu as escadas correndo, seus pensamentos agitados, loucos, desorganizados. Assaltou sua reserva de droga. Ligou o computador enquanto esperava e escreveu um e-mail que mandou à amiga virtual. Contou-lhe tudo e disse que ia se acabar. Queria morrer, pedia por isso. Carolina ainda conseguiu se arrastar até o posto da esquina, comprar quatro maços de cigarro e dois litros de um vinho barato. No caixa deparou-se com um aparelho de barbear e acabou comprando-o também.

Voltou pra casa, ligou o chuveiro e começou a encher a banheira. Ainda não derramara nenhuma lágrima desde que deixará o colégio. Pegou a erva, o cigarro, o vinho e mais algumas garrafas de tudo que era alcoólico do bar do pai e trancou-se na sua suíte. O ar era rarefeito, e ela estava fora de si. Pensou em como sua vida, tão curta, podia estar tão desorganizada, tão fudida. Enrolou o baseado e acendeu. O primeiro não fez efeito nenhum, nem o segundo. Ficou puta da cara e deixou a seda de lado. Agarrou o primeiro maço de cigarros e fumou em menos de meia hora. Quando tirou a roupa para entrar na banheira, a água já estava gelada, mas ela não se importou. Achou válido o castigo, por ser tão burra, tão idiota. Já esvaziara as duas garrafas de vinho e meia garrafa de uísque do seu pai quando ele chegou em casa. Bateu na porta e perguntou se ela estava bem, ela disse que sim, mas que estava cansada e pediu que não a perturbasse mais. Conseguiu ouvi-lo descer as escadas e ligar a tevê. Saiu da banheira já toda enrugara, e ainda nua, deitou em baixo das cobertas. A garrafa em uma mão, o cigarro pendendo na outra, o aparelho de barbear na mesa de cabeceira. Ela nunca curtira esse lance de automutilação.

Mas ela nunca havia chego tão fundo no poço. Não pensou duas vezes quando agarrou a lâmina. O corte foi fundo e rápido, ela sentiu arder, pinicar, coçar, tudo ao mesmo tempo. A dor a encheu de prazer. Pelo menos sentia alguma coisa. Cortou mais fundo, e a linha do seu pulso foi ficando cada vez mais vermelha. As gotas caíram no lençol e ela começou a se sentir fraca. Deixou escorrer o sangue do braço esquerdo enquanto cortava o direito. Um gole de uísque a mais, outro cigarro e o mundo girava junto à poça de sangue que se formava em seu colo. Quando se reconectava ao mundo, ouvi seu pai esmurrar a porta, ameaçando invadir seu quarto se ela não abrisse logo. Perdeu a consciência enquanto seu pai descia as escada atrás de algo pra arrombar a porta do seu quarto. Quando ele conseguiu abrir a cena era tão deplorável que quase não acreditou que era sua própria filha. A ambulância chegou em dez minutos, e os curativos nos pulsos se demoraram neles mais umas duas semanas. Ela ficou quatro dias no hospital, e nos breves contatos que tinha com os pais implorava apenas por uma coisa: sua amiga virtual de Porto Alegre. Alice. Ela ligou no quarto dia, e disse que apareceria em breve para buscá-la. Em três meses Carolina estava com as malas prontas para embarcar para uma nova fase da sua vida, Alice convencera os pais de Carolina que ela devia passar um tempo fora. Um tempo fora com Alice. Num lugar distante onde ninguém soubesse que as novas tatuagens no pulso eram só pra esconder as cicatrizes de uma época que Carolina queria, mas nunca conseguiria esquecer.

Leticia Stinghen
Enviado por Leticia Stinghen em 17/06/2009
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