Sexta-feira, Olhos de Gato
Sexta-feira é um dia ruim para se começar alguma coisa. Eu prefiro as quintas-feiras, e pretendo me policiar a criar o hábito de sempre escrever alguma coisa nas quintas.
A verdade é que ninguém deveria ficar sozinho em casa nas sextas, muito menos se atrelar a um computador para escrever algo que o mundo inteiro pode ler, mas provavelmente ninguém vai se interessar.
Foi numa sexta também, quando estava voltando para casa, que me assustei com algo passando rápido entre minhas pernas. Não pude ver o que era, apear de ser ainda no final da tarde, e apesar de não estar totalmente escuro.
Apesar de temer que aconteça como da última vez, comecei a procurar o que era. Respirei aliviado quando olhei por entre as grades da casa, e enxerguei escondido na sombra da escada, um gatinho. Ele estava imóvel, e me olhava fixamente. Ele deve ter se assustado, tanto quanto eu.
Mas a verdade é que as únicas coisas que eu conseguia ver nitidamente eram sua silhueta e seus olhos, que brilhavam na sombra.
Depois de ficar um tempo encarando aquele olhar, começou a me dar uma estranha aflição. Os olhos pareciam me cobrar alguma coisa. E então, sem perceber, eu já estava quase no meio da rua. Era uma rua relativamente movimentada, mas felizmente não passou nenhum carro naquela hora. Estranho que também não tinha ninguém na rua, o que era raro mesmo.
Pensando agora, tudo naquela hora parece ridículo, não fosse aquela sensação estranha de que arrastava alguma coisa na perna.
Percebi quando olhei para baixo, que não me lembrava de ter calçado aqueles sapatos de manhã. E também que estava sem relógio. Aliás, não lembrava de ser saído tão tarde, a ponto da noite já tinha caído completamente e os postes de luzes já estarem acesos.
Sinceramente não faço idéia de quanto tempo fiquei alí, mas quando fui procurar os olhos novamente, eles já não estavam mais lá. De repente, parecia que estava ouvindo pelas costas, um murmúrio baixinho e intermitente. Apressei o passo para sair logo dalí.
A sensação de ouvir coisas, penso que era apenas cansaço, porque explicava também o peso nas pernas. Mas de repente, veio aquele sussurro bem perto da minha orelha: "Não foi aqui!". É constrangedor, mas eu estava novamente apavorado e corri sem olhar para trás.
Prefiro imaginar que esse tipo de coisa ocorre com qualquer pessoa, mas provavelmente, a maioria delas não se expõe a contar para outras pessoas. Como eu mesmo, não gosto de contar.
Porém, como isso me deixava angustiado, uma pessoa me aconselhou a escrever uma agenda, para extravazar o pensamento. E isso realmente me ajudou bastante.
Há alguns dias um colega me sugeriu trocar a minha velha caderneta por um blog. Não éramos muito chegados, mas ele se interessava nas coisas que eu dizia, e parecia mesmo que se preocupava comigo. É chato, mas não sou uma pessoa que tem muitas amizades. Não que eu não queira, mas já ouvi que as pessoas me acham estranho e acabam se afastando de mim, mesmo sem perceber.
De qualquer forma, lembro de nossa conversa na casa do Luiz, quando ele se ofereceu para ajudar a publicar coisas na internet. Mas isso acabou não acontecendo.
No começo da semana, poucos dias depois que conversamos pela última vez, recebi a notícia de seu falecimento. Parece que foi em um estúpido assalto, em um cruzamento. Acredito que seja coincidência mas foi muito perto de onde ocorreu esse episódio do olho do gato.
Pensei nisso a semana inteira.
Tentei lembrar das coisas que conversamos, porém não consegui muita coisa. Não sei se é por isso, mas não consegui sentir tristeza, pena ou raiva pelo meu amigo. Toda vez que penso nele, me lembro do medo que senti do olho do gato, e me sinto uma pessoa horrível por causa isso.
Portanto, acredito que devia estas linhas a ele.