na quarta noite como um anjo

“I just miss you” era tudo que ela conseguia pensar. Era a terceira noite seguida em que ela precisava de soníferos e calmantes pra dormir. Não conseguia mais conviver com o rombo dentro do próprio peito, cavado a unhas, aberto a pequenos e repetitivos golpes de uma faca pouco afiada que é a solidão. Ela não tinha nem mais coragem de olhar para o lado, tudo que via era um quarto vazio, paredes imaculadamente brancas, espaços não preenchidos formando o verdadeiro cenário da sua desgraça. Não queria mais viver mas não tinha forças pra levantar da cama. E mesmo não querendo as lembranças da noite em que ele se fora voltaram à sua cabeça.

Ela recordou a briga. O momento exato em que chegou na sua casa para dar-lhe um beijo. Lembrou-se de como ele estava transtornado, frio. Todas as palavras que ele pronunciou naquele dia fixaram-se como tatuagem em seu coração, ela nunca seria capaz de esquecer o gelo dos seus olhos quando ele disse “acabou”. Pensava ter feito tudo certo até aquele momento. Ela não conseguiu deixar de dizer que havia abandonado tudo por ele. Seus amigos, seus estudos, sua família. Ela teve que lhe falar novamente que era com ele que queria ficar pra sempre, que por ele já havia desistido até de ter um futuro. Ele era a única fonte de felicidade capaz de encher-lhe o peito de satisfação. Mas ele a maltratou, disse que tudo que vem fácil vai-se muito mais fácil, que ela não representava nada além de mais uma aventura, que ele cansara, pura e simplesmente cansara.

O mundo ficou sem chão quando ela saiu daquela casa para nunca mais voltar. A porta foi batida na sua cara, e ela não pode deixar de notar que ele estava drogado. Mas não fazia diferença, ele não a queria nem assim. Caminhou como se seus pés soubessem o caminho de casa. Não sentia nada, lembrava apenas do frio que sentia, mesmo embaixo do sol de quarenta graus. Era seu coração que congelara. Andou pelas ruas como uma transeunte qualquer, como se tivesse alguma coisa na cabeça, algum objetivo pra cumprir, mas sua mente estava vazia, ele havia mandado ela embora. Mas ela havia esquecido o coração na casa dele. Martirizou-se, quis castigar-se, mas a unha não era afiada o suficiente pra perfurar a carne do seu pulso e esvair-lhe a vida. Como pudera ser tão burra? Como acreditara sinceramente que ele iria gostar dela, patética, pra sempre. O cara tinha uma banda de rock e um monte de vadias atrás dele. Porque se interessar por ela? Uma patricinha da classe média que podia pagar-lhe todas as bebedeiras com a mesada. Era só isso que ela era pra ele. Um objeto, um cofre de porquinho que podia servir-lhe de diversão quando quisesse. As lágrimas se recusavam a cair na rua, parece que algum limite de decência se estabelecera sem seu consentimento. Quando virou a esquina de casa seus olhos borraram, mas ela continuou firme. Cumprimentou o porteiro como se não houvesse nada de diferente. Pegou o elevador e engoliu firme. A porta de casa estava trancada e ela não tinha a chave. Apertou a campainha mas não conseguiu se segurar por mais tempo. Desmaiou na soleira da porta e só acordou em sua cama, uns quinze minutos depois pelo que lhe contaram.

Recusou tudo. Travesseiros, cobertores, comida, água. Aceitou apenas algo que a entorpecesse e a fizesse esquecer a cena que acabara de lhe acontecer. Sua mãe deitou-se com ela e então as lágrimas acharam seguro cair. Rolaram por sua face em busca de um reservatório pra encher. Nunca havia chorado tanto em sua vida. Sua mãe ficou até ela adormecer. E quando acordou, dezessete horas depois de ter deitado, pode constatar o estrago que ele fizera em sua vida. Não sentia mais nada: fome, frio, calor... apenas vazio, um vazio imenso que chamava por ele, pela sua voz quente, seus respirar compassado, sua mão confortável. Três dias se passaram como se nem tivessem existido. Ela não conseguia perceber as horas, os dias. Nem chorar conseguia mais. Secara, todas as fontes de algo que demonstrava que ela estava viva se esgotaram. Não recebeu nenhuma visita, não permitiu que lhe tirassem dali. Ficou deitada, engatada na cama como um caramujo se engata a sua casca pra não morrer. Sentia que o mundo sumiria se ela ousasse colocar os pés pra fora da cama. Não queria sair disso. Nada no mundo parecia-lhe convidativo o suficiente para fazê-la se mexer. Foi então que percebeu que a culpa na verdade era toda dela. Que fora ela quem quisera jogar tudo fora. Fora ela quem colocara a si própria em segundo lugar. A culpa era dela por ter posto sua vida nas mãos de um roqueiro viciado de voz tão doce. Então não pode suportar, olhou a caixa de remédios pra dormir na mesa de cabeceira e nem se deu ao trabalho de ler a bula. Também cansara daquilo. Sabia o que eles podiam causar e não hesitou. Tomou a caixa inteira, de uma só vez. Antes rabiscou num papel de recados o quanto amava os pais, e que a culpa era só dela. Só.

Dormiu naquela quarta noite como um anjo. E a última coisa da qual lembraria seria o vazio do seu peito se expandindo e invadindo cada pedacinho do seu corpo e da sua alma. Sentiu uma paz inexplicável e fechou os olhos sorrindo. Dormiu, um sono sem sonhos, sem tragédias ou comédias. Apenas um sono com o último sorriso nos lábios.

Leticia Stinghen
Enviado por Leticia Stinghen em 11/06/2009
Reeditado em 10/07/2009
Código do texto: T1644141