A ENCRUZILHADA DA VIDA...
Homenagem às vítimas da tragédia do Air-Bus da AIR FRANCE...
Deveria ser uma viagem como outra qualquer. A família constituída pelo pai , mãe e uma filha de 14 anos. Era uma viagem de férias. Aliás, a primeira para a Europa, na realização de um sonho que perfilava nossas aspirações há um bom tempo. Nunca dava certo, pois uma hora era a incompatibilidade entre as férias do casal, outra a falta de dinheiro, outra a falta de oportunidades e de pacotes turísticos que dessem ensejo a uma viagem econômica e compatível com nossa condição financeira. Mas agora, não! Tudo se encaixou pois as empresas em que trabalhávamos não fizeram obstáculo à escolha da data de nossas férias. Foi uma semana tensa na pré-viagem pois nós três estávamos muito felizes, afinal, dali alguns dias estaríamos em Paris, olhando para a Torre Eiffel e curtindo todas as opções de viagem que um delicioso pacote turística estava nos oferecendo.
No dia do embarque fomos acompanhados por outros membros de nossa família, pois seguimos para o aeroporto em companhia de minha sogra e de meu pai. O Galeão estava agitado e tinha muita gente pronta para viajar para os mais diversos lugares, tanto para atravessar o oceano como para convergir para outras direções aqui no nosso imenso Brasil. A ansiedade se apossava de mim, mas tinha de manter a calma, pois como chefe de família não poderia expor minhas incongruências pessoais e íntimas, até porque numa viagem de tamanha importância para nós, teria de me manter na posse de minhas serenas posturas de condutor de nossos destinos, já que sempre fui assim meio controlador e, por tal razão, sempre me mantive à frente das decisões.
Interessante como nosso íntimo anuncia coisas que não sabemos decifrar, mas que sempre as relacionamos com as nossas inseguranças e fazemos um esforço tremendo para que não venhamos a nos abater por aquela angústia que se torna incontrolável em certos momentos, mas que de uma maneira ou de outra temos de driblá-la, porque nosso futuro pertence a Deus e não temos como mensurar nenhum porvir. Eu previa que alguma coisa não ia dar certo. Mas fazer o quê? Caso fosse expor tal insegurança íntima, logo viria alguém querendo me convencer que eu não precisava ter medo algum, pois qualquer expectativa que se poderia extrair naquele momento era de alegria e não de tristeza. Ocorre que eu não sabia definir que tipo de angústia era aquela, porque jamais tive tal sensação. Mas como explicar isso a alguém? Como dizer que neste momento o que se apossava de mim era um medo horrível e indecifrável para a minha parca vida errante? Enfim, embarquei naquele avião com essa sensação que só foi se dissipando quando alcancei os céus e vi que o Air-Bus perfilhava o horizonte numa calmaria infindável, daquelas que chega a ser um convite para dormir.
Assim, passados os sobressaltos iniciais consegui relaxar um pouco, mas sempre com a presença daquele incômodo frio na espinha que insistia em me causar calafrios. Aí, olhei para o lado e vi minha esposa dormindo tranqüilamente e, logo ao lado, minha filha que lia distraidamente uma revista qualquer. Pensei comigo, como estou sendo ridículo neste instante. Talvez se contasse isso para algumas delas, iriam dizer que um “bocó” do interior e que só estou assustado porque vou para a Europa – um local que nunca visitamos antes.
Olhei para o relógio do celular, o mostruário digital marcava 09 horas da noite. Não quis ficar sentado na poltrona e inventei uma desculpa para me dirigir ao toalete. Lá cheguei a abrir a braguilha da calça, mas daí me recriminei – Ora, o que estou fazendo? Não vim aqui para urinar, mas porque queria distrair-me e me afastar dos pensamentos indigestos. Voltei para minha poltrona vi todos os passageiros descontraídos sendo que a maioria deles dormiam sossegados como se nunca tivesse saído de casa.
Parece que fui escolhido por Deus nesta viagem para ficar vigilante. Mas não sei porque deveria ficar vigilante, pois o que iria acontecer dali algumas horas era algo inevitável. Assim, com olhos bem abertos olhava para o lado e para aquela janela minúscula do avião e via que deveria estar muito frio lá fora pois ela esboçava embaçamento, e algumas gotículas de água iam se desprendendo vagarosamente. Fiquei a olhar para aquele cenário ambíguo que jamais entenderia, mas que me chamava atenção de uma forma indelével e desinteressada. Enquanto olhava, senti um frio na barriga quando o avião deu um solavanco inesperado como se tivesse caído num imenso buraco. Contive-me na minha solidão do pensamento, pois já havia passado por muitas turbulências na vida e aquilo só poderia ser mais uma delas.
Passou-se alguns segundos e nisso todos já tinham acordado e alguns já olhavam com muita desconfiança aqueles solavancos. Já não era uma sensação de ascendência e de barulhos intermitentes que se observa nas turbulências. Havia um barulho estranho, como se fosse algo se desprendendo. Era um barulho de metal se contorcendo. Em poucos segundos as máscaras de oxigênio abaixaram automaticamente sobre nossas cabeças. Não tínhamos qualquer informação do comandante sobre o episódio. Minha preocupação foi dizer à esposa e à minha filha que era um procedimento normal e que elas tinham de por as máscaras. Mas, à aquela altura já tínhamos exata noção de que algo muito grave estava acontecendo. Assim, o que se via e ouvia eram pessoas apavoradas gritando, chamando pelo nome de Deus e expressando o pavor que a situação causava em todos.
Daí em diante não são os vivos que podem narrar. Mas só alguém que já passou a encruzilhada entre a vida e a morte. O único gesto que consegui realizar antes do estrondo final foi abraçar-me à esposa que já estava abraçada à nossa filha – com o instinto de protegê-la. A partir daí desembestamos pelos céus rumo ao centro do Oceano. Abriu-se à nossa frente um vertiginosa nuvem de água fria, misturada com uma pressão inigualável do vento e entre esse vulcão de fenômenos que nunca havia sentido, enviavam labaredas de fogo que se misturavam entre o ambiente hostil e imensurável de fenômenos estranhos com vasto poder de destruição. Não sei qual foi o momento em que me despedi do corpo. Se quando vieram vulcões de gotículas de água fria sobre mim. Ou quando veio a pressão do ar e o sufoco nas narinas, quando não havia condições nenhuma para respirar. Ou então quando adentraram em meu corpo pequenas partículas de gelo que pareciam balas de canhão que atravessam minha carne. Acho que Deus na sua grandiosidade de criador não quis sacrificar ainda mais seu filho, naquele mundo assustador e na solidão da razão corpórea, fazendo-me fenecer nas condições do corpo (acho que foi um desmaio que me fez acordar na morte).
Passado o pesadelo da encruzilhada hostil que se desenhou sob a sorte daquelas 228 pessoas a bordo, veio aquilo que todos querem saber, mas que ninguém pode contar. Só a mente de um pensador ou de um escritor pode profetizar essa hora fatal e indescritível na prática humana. Eu sei que acordei vendo um cenário maravilhoso, entre águas calmas no fundo do oceano pude enxergar minha esposa e minha filha que ainda atônitas chamavam por mim, como se querendo proteger-me de algo inefável e complexo, para os quais não tinham capacidade para assimilar, talvez por não se preparem para o acontecimento que antevi quando estava no saguão do aeroporto do Galeão. Daí passei a compreender porque eu estava tão inseguro nessa viagem, porque Deus tinha reservado para mim aquele encontro após a encruzilhada. Assim, disse aos meus entes queridos para elas terem calma que aquele era um momento ímpar em nossas existências e que dali em diante teríamos de esperar os desígnios de Deus, foi quando começaram a parecer em nossa frente todas aqueles entes queridos que haviam se despedido na vida corpórea. De mãos dadas fomos sendo levados daquelas águas brilhantes, para um local que não posso contar ante a natureza sucinta deste pequeno conto.