O IMPÉRIO DOS PESADELOS (Primeira parte)
Aquela manhã acordou chuvosa e lúgubre, tal como todas as manhãs de guerra o deveriam ser, ou pelo menos ele assim o julgava.
A primeira claridade despertou-o do torpor nocturno, torpor duradoiro, de há anos, pois desde o seu alistamento que pura e simplesmente desconhecia o sono, tal como todos o entendem ou dormem.
Desceu do beliche, vestiu as calças e puxou de um cigarro.
A ligeira tontura indicou-lhe estar de ressaca e de jejum. Olhou pela janela e observou os raios de sol a romperem delicadamente por entre o pesado manto de nuvens negras, raios a iluminar campos de cultivo, campos de paz, pois a guerra passava-se bem mais para norte. Sentiu-se então a flutuar, para longe, a levitar no espaço-tempo e a recordar outros campos, agora inimigos, outros campos de paz. A clássica imagem duma criança a brincar pareceu-lhe ser demasiado verdadeira. Viagem terna a durar a vida do cigarro, que lhe queimou os lábios. Praguejou na língua do pensamento, língua esquecida e censurada.
Felizmente para si estava completamente só, como sempre.
Eram 7h, faltavam duas para novo voo.
Vestiu a camisa, depois as calças, pôs a gravata, depois procurou no armário o casaco de cabedal. Por hábito limpou dos ombros a caspa inexistente. Foi ao espelho e mirou-se; faltava qualquer coisa...Claro. O boné de oficial. Olhou-se novamente e sorriu forçadamente. À sua frente estava um homem de vinte e sete anos, estatura média, compleição robusta, cabelo negro, tal como...e olhar distante. Beatrice, última de uma longa lista de companheiras sempre temporárias dissera-lhe ternamente que o seu olhar era o de um homem doente. A sabedoria velada da pequena costureira espantara-o, mas fizera-o não voltar àquelas águas furtadas, onde no intervalo dos combates faziam amor. Doente, sim, ela aproximara-se quase a tocar na sua ferida.
Por isso não a via há mais de dois meses, apesar de saber que ela durante algum tempo ainda se dirigiu à base, onde perguntava por ele repetidamente, e repetidamente receber a mesma desculpa do “Major estar em missão”, mesmo quando ela o sabia perdido de mota nos bosques, a acelerar, como chegou a acelerar com ela no selim traseiro, à procura de uma fuga qualquer sempre a grande velocidade que lhe permitia passar por tudo sem ver nada, apenas sentindo estar a viver depressa, sem parar, ainda segundo a sua cirúrgica intuição, até ela se ter fartado de tanta ida, tal como todas as outras, jovens de três nacionalidades, com vontade, mas incapazes de viver o drama confuso e obscuro deste homem.
Abriu a porta e saiu para o exterior, sob a chuva miudinha típica. Tomou o caminho para a messe, onde escolheu o sítio habitual no canto, colado à “sua janela”, isolado, como sempre, apesar da sua condição de líder de esquadrilha, apesar de ser o mais velho e experiente dos veteranos, apesar da sua folha de serviços impecável, apesar, apesar...continuava só, por opção própria e pela atitude dos outros. Só mesmo os novatos tentavam confraternizar com ele, com este “híbrido”. Estranho talvez fosse o adjectivo a pecar por escasso se aplicado a este combatente convicto de primeira nacionalidade perigosa.
Comia, como sempre, perto da tal janela, e também como sempre olhou para o exterior, sentindo-se dividido, desejando simultaneamente o acabar de toda aquela horrível chacina, e a sua perpetuação eterna, dando vazão à ira à enorme ira e revolta que de dia a dia, hora a hora, minuto, segundo a segundo o consumia violentamente.
Em termos psicanalíticos estava a fazer o clássico processo de transferência, destruindo tudo o que lhe permitiam e não permitiam destruir pela incapacidade de o fazer interiormente. Sabia-o bem, mas também sabia não ser um homem da ciência, das “intelectualidades”. Era um guerreiro, e como tal deveria prosseguir a sua tarefa de caos até ao derradeiro suspiro das hostilidades, independentemente da razão, ou das razões a movê-lo, ou talvez fosse ao contrário...Era um homem comum, lançado na grande chacina, desejoso por parar, mas ao mesmo tempo desorientado por temer não passar sem ela.
Faltavam apenas quinze dias para o final da guerra e, embora o desconhecesse, pressentia-o, e dai a redobrar os seus esforços na destruição de toda e qualquer coisa a ter qualquer sopro de vida, era um passo demasiado curto, e ele dava-o, convicta e friamente sem hesitar.
Por inúmeras vezes a selvajaria quase o tinha pregado ao chão, mas a invulgar dedicação e o fanatismo exemplar aparente, além de capacidades inatas como piloto de escol, garantiam-lhe a continuação do estado de graça, ante o seu riso interior. Riso sem alegria, riso pelos generais confundirem raiva com fanatismo, ódio com dedicação...Sentiria, sem dúvida, saudades da guerra e do seu vocabulário do seu vocabulário tão próprio onde assassinos eram promovidos a heróis e assassínios premiados com louvores.
E por absurdo que parecesse era numa insignificância que o ostracisavam.
O olhar perigoso percorreu a messe e observou com olhos de raios X os seus subordinados. Não os via, apesar de tudo, não via os olhares nervosos, censórios, mas temerosos da atitude a tomar, não via porque olhava apenas para confirmar estar apenas ali, naquele espaço físico, acolhedor, porque as pessoas desde há muito que eram o que menos lhe interessava, porque, apesar de sofrer também por elas sobrevivera transformando-as em objectos inanimados com os quais era preciso conversar de vez em quando para manter as aparências. Este vaguear era já conhecido, mas tomado como mais uma extravagância a acrescentara acrescentar à personalidade taciturna e anti-social.
Alguém sentou-se ao seu lado e fitou-o, ansioso.
Virou a cara e deparou com o inevitável novato, mas não lhe prestou mais atenção continuando a olhar pela janela.
-Sir, posso-lhe fazer uma pergunta?
-Depende.
-De...
-Do tempo que me irá ocupar, se o sotaque o incomoda, se se sentirá incomodado, depende, depende do que quiser. - Continuou sem olhar para ele.
-Eu sou o seu novo ala..e esta é a minha primeira missão, eu só queria saber...
-Qual a sensação de combate? Sendo eu o mais experiente supostamente serei o mais avisado de todos e o que lhe poderei dar o melhor conselho...
-Sim.
-A sensação de voar calmamente sobre os campos tal como no treino, e, de repente, tudo começar -tiros de FLAK, a merda da artilharia anti-aérea alemã, quase a riscarem ou mesmo a atingirem o seu belo e novo P51. A sensação de descer sobre a peças de a crivar com balas e não ver, mas sentir, os serventes ( alguns deles com a idade do seu irmão mais novo) a serem feitos aos bocados...a sensação de ouvir os ossos a partir, a carne a rasgar...a sensação de encontrar um Messerschmitt 262 e, num duelo fácil o deitar ao solo, não estranhando a razão do piloto ser ainda mais imberbe do que você, com um treino incomparavelmente inferior...e de nada lhes valer pilotar o primeiro avião a jacto a entrar em combate da história, e também o melhor da guerra. A sensação de ser ÀS quando, aos comandos dos caças alemães estão garotos a quem não deram tempo para amadurecerem.
A sensação de vencer não por ser naturalmente bom piloto, mas apenas porque a qualidade dos inimigos é...sofrível.
A sensação de dar graças aos céus pela maior parte dos ASES nazis ter sido dizimada durante a guerra, e agora ter de enfrentar apenas os seus sucedâneos...
A sensação de derrubar pontes cheias de civis, na segurança de, sendo nós os vencedores e essa barbárie passar a lamentável lapso?
A sensação de em cada saída se tornar num assassino pago pelo Tio Sam e ter de dormir com isso?
O jovem empertigou-se. Nunca tinha ouvido falar daquela forma quase insolente da nação e das chefias. Ainda apegado à lógica de seguir o livro de regulamentos, teve a ingenuidade de criticar Claus.
-Meu Major, chamar assassinos a acções militares ordenadas pelo Estado Maior é insubordinação.
-Olhe...pois é...Tem uma série de testemunhas, não quererá apresentar queixa ? -Atirou com desprezo.
-Bem...
-Quer ou não? Decida-se, daqui a pouco vou ter que o ensinar a matar, por isso agradecia que se despachasse!
-Eu...
-Então aprenda uma coisa, no duvidoso caso de querer voltar a falar comigo, restrinja-se a ouvir ou pelo menos a cingir-se a questões meramente militares, senão sou eu a apresentar queixa, ouviu?
-Sim senhor.
-E saia da minha frente pois quero acabar de comer descansado.
Noutro caso outro piloto estaria em maus lençóis, mas, curiosamente o pormenor da sua anterior nacionalidade protegia-o : ele constituía o exemplo perfeito da assimilação, embora na realidade quem o promovia desconhecesse o motivo da dedicação fervorosa, motivo igual ao da revolta. Assim, contra tudo e a favor de quase todos Claus Phoenix prosseguia a sua “carreira exemplar”.
Bebeu o resto do café e dirigiu-se á sala de breefing onde após as indicações sobre a missão ( missão livre sobre território inimigo, ou seja destruir o qualquer coisa desde que justificado estrategicamente), saiu em direcção á sua montada.
Dirigiu-se ao Mustang, o caça mais avançado dos aliados, capaz de velocidades superiores a setecentos quilómetros por hora e autonomia capaz de, a partir de Inglaterra, permitir a enormes enxames de caças acompanhar as formações de bombardeiros até Berlim.
Para os nazis a guerra foi perdida por várias razões e esta foi uma delas. Com a melhoria geral das máquinas aliadas, ainda inferiores mas em número suficiente para desequilibrar, mais o escassear inexorável de tripulações germânicas substituídas por novatos incapazes de tirar o melhor partido da superior tecnologia alemã e o acumular de experiência por parte dos aliados os trunfos da Nova Ordem pecaram por escassos. E parte não negligenciável da vitória devia ser atribuída a máquinas iguais a esta.
Mal se aproximou, o seu pequeno rafeiro (achado numa licença dois anos antes recém-nascido e abandonado perto de um Pub nas imediações da sua anterior base) veio ter consigo arrastando-se. Impressionado pela criaturazinha frágil e inofensiva, Claus adoptara-o e prometera que, por cada vitória lhe aumentava a ração. O resultado estava a vista com o bicho a ser o exemplo de uma exagerada opulência. Afagou-lhe a cabeça e olhou para o lado esquerdo do avião por debaixo da cabine. 80 Suásticas indicavam-lhe o número de vitórias, o mais alto das frotas aliadas, sem contar com os alvos destruídos em terra, desde baterias anti-aéreas, a pontes, carros de diversa espécie e tanques. Só na Normandia lembrara-se de ter destruído cinco. Todas as mortes são horríveis, mas dizia-se que a dos tripulantes dos carros de combate era a mais pavorosa, entre chamas, encurralados. Cinco tripulantes vezes cinco. Vinte e cinco homens imolados. No mínimo.
Acendeu um charuto e chamou Tim, o seu mecânico pessoal que se encontrava a preparar o avião. Era o seu único amigo, camarada dos primeiros tempos, mas nem com ele se mostrava, tratava-o apenas cordialmente, oferecendo-lhe sempre qualquer coisa por altura do natal, e era tudo. O outro defendia-o nas discussões que inevitavelmente se geravam sobre este oficial, unanimemente considerado, mas cuja origem e feitio retraído...Por várias vezes Tim chegara a vias de facto com os companheiros, e mais várias vezes ainda tinha sido sovado, inquirindo-se sempre se valia a pena defender um homem que mal falava, sendo verdadeiramente humano apenas para o cão. Mas o olhar, a pena sentida nesse olhar de morte convertera-o e por isso era o seu mais fiel aliado entre os subordinados.
Gestos ritmados puseram-lhe o pára-quedas ás costas. Depois de estar completamente preparado, ajeitou o capacete de couro e trepou para o interior do avião.
Ajeitou-se no assento, prendeu as fivelas e ficou ligado à nave. Depois ligou o motor sentindo o impacto progressivo dos dois mil cavalos, o seu rugir, loucos de fúria, loucos pelo ar. As hélices giraram dementemente. Então girou a manche para o lado direito, fazendo o avião girar 90º e os pneus chiarem. Olhou para trás e viu toda a esquadrilha à espera; conferiu as horas
9h em ponto. Hora da caça, pensou estupidamente.
Abriu o “gaz” e o pássaro descolou.
Dai a poucos minutos, ainda sob solo francês, passou sobre um comboio. Desceu ligeiramente e preparou as armas; não. É amigo. Absurda fronteira, absurda política.
Evadiu-se e viu-se de novo longe, onze anos mais cedo, a sair de Berlim, ele e a mãe, fugindo de qualquer coisa a ele desconhecida mas suficientemente pavorosa para a fuga ser desesperada.
O comboio balançava doce e indolentemente, ronronando sobre os carris, num bailado sedutor de um só movimento. Não obstante, a cada passagem de guardas pela cabine “à procura de judeus”, a mãe tremia e apertava-o, para incómodo dos seus dezasseis anos. Pouco à vontade com este comportamento, passou a viagem toda a olhar pela janela através da qual, pela primeira vez viu um biplano do novo exército do ar, a Luftwaffe. A cada abertura da porta correspondia novo apertão, mas ele já nada sentia, via apenas o campo e o avião, pelo qual se tinha apaixonado à primeira vista.
Estava dado o mote.
Depois de passarem alguns meses na província, seguiram rapidamente pela Europa até França, de onde embarcaram para os Estados-Unidos. Só então ela pareceu mais aliviada. Apesar de não serem judeus, o terror da progenitora era equivalente.
Por vezes sentia-se confuso sobre o segredo que sabia guardado por ela, mas esta nunca lhe dissera nada, nem mesmo quando avistaram a silhueta tranquilizadora da estátua da liberdade ela falou. Nem mesmo quando ela se declarou refugiada política e apresentou documentos a comprová-lo ele compreendeu.
Sabia apenas que era alemão, ou melhor ex-alemão por rapidamente terem adoptado a cidadania americana.
Entretanto a paixão de voo levara-o a um aero-clube, onde os seus professores cedo constataram estarem perante talento puro. Aos dezoito anos tornara-se num piloto profissional, e aos vinte já corria o país entregando passageiros e mercadorias, adquirindo experiência e aprendendo a pilotar com as mais difíceis condições meteorológicas.
E, repentinamente a guerra começara na Europa.
A neutralidade americana serviu-lhe às mil maravilhas, decidido que estava a não pegar em armas por receio de encontrar antigos amigos.
Passou mais um ano e meio, depois da rendição de grande parte do grande continente e com a irredutabilidade Inglesa, a máquina nazi virou-se para leste e invadiu a União Soviética. Cinco meses depois o Japão atacara Pearl Arbour, obrigando Rosevelt a entrar na guerra, mas em guerra apenas contra o Japão. Para alivio de Claus, o presidente hesitava em abrir as hostilidades com os nazis, tarefa facilitada por Hitler que, por seu turno, no seu afã de guerra cometeu a suprema asneira de declarar guerra á maior das democracias , que era em simultâneo a mais poderosa máquina industrial do globo.
O país começou então a mobilização de gente e de recursos, enquanto Claus se tornou ainda mais discreto, fixando a sua actividade em áreas semidesérticas, onde poucos lhe perguntariam qual a razão de ainda não se ter alistado. Vivia tranquilo e assim contava ser até ao fim do conflito. Chegara mesmo a assentar com a filha de um pastor presbiteriano que entretanto conhecera. Tinha vinte e dois anos e chegara à conclusão que tinha de assentar. Escreveu à mãe convidando-a para o casamento, mas na resposta, esta dispôs-se a revelar-lhe finalmente o segredo de quase duas décadas e meia, o segredo a estar por detrás da sua fuga. Regressou à costa californiana onde ela morava e soube finalmente. Jamais pudera imaginar poder conter dentro de si tamanha revolta, não podia. Só havia uma forma de ser atenuada.
Nunca mais voltaria a ver a noiva. No dia seguinte alistou-se.
Demasiado confundido, tinha apenas a ideia fixa de voltar à pátria mãe pelo ar e despejar sobre este povo cego guiado por um déspota a revolta, a raiva, o ódio ou seja lá o que for que o minava, que o desassossegava.
A mestria e a dedicação fizeram o resto.
Combatia desde 43, tendo estado presente em todos os cenários mais relevantes. Debutara na Tunísia, onde aprendera o mester de furar os célebres 88, os melhores canhões anti-carro do momento. Depois pintara a primeira suástica sobre a Sicília, um Fiat italiano, não alemão. A sede aumentara. Quando os aliados chegaram à Itália, tornou-se um ás, adicionando mais dez à lista. O invulgar talento tirou-o do anonimato geral do combatente comum. Começou a ser notado, sendo promovido e agraciado com a primeira condecoração. Mais tarde foi transferido para Inglaterra, onde lhe confiaram o comando de uma esquadrilha, como prémio do seu 50º derrube.
Após várias missões de escolta ou em surtidas livres, encontrou-se na Normandia, em plena libertação do continente, primeiro passo concreto na frente ocidental para o fim nazi. Depois, fixou-se em França. Dali partiu para as derradeiras batalhas. Por isso, e mal as condições climatéricas o permitiram, esteve com os seus homens sobre as Ardenas, a última e quase bem sucedida grande ofensiva germânica, prontamente esmagada pela imparável máquina aliada. Quantos homens terá morto? Esqueceu-se, mas sabia terem sido muitos, demasiado poucos.
Por fim assistira quase monotonamente ás exéquias fúnebres do mais tenebroso dos impérios humanos, fera ainda perigosa e o seu aumento de vitórias ai estavam para o provar. Havia sempre qualquer coisa para destruir, sempre uma ponte, um caça, um comboio, um tanque, um ciclista, um soldado.
Do céu tudo se vê, do céu tudo se destrói.
Providencial sem dúvida o dom com que nascera.
Pelo meio aderira ao partido democrático, completando a metamorfose e transformando-se num americano perfeito, ou ideal conforme o prisma de onde era observado.
A cada alvo destruído sentia-se menos alemão, menos nazi, menos filho. A cada morte sentia-se menos cúmplice, mas não conseguia esquecer, lembrava-se sempre, dolorosamente sempre!
Regresso ao presente.
Alemanha. Perto de si a escola onde se pensa estar instalada a sede da Gestapo da zona. Para evitar enganos aconselharam várias passagens sobre o alvo. Se não houvesse FLAK a presença de caças ou de qualquer veículo militar, a escola estaria limpa. Não há, mas falta-lhe a vontade para seguir ordens. Inventa um Kubelwagen no recreio e ataca à canhoada e aos foguetes. De súbito um professor seguido por três alunos sai do edifício a gesticular. É lógico que matou as crianças que faltam, mas não se importa, não se pode importar.
A única testemunha da tragédia é o seu ala, o novato que falou consigo à pouco que lhe berra desesperado aos auscultadores para parar. Isso, no entanto, parede não o afectar, porque persegue, como se nada se tivesse passado, como se aquele fosse um alvo normal, e para ele é, porque é alemão, porque é nazi, porque está em solo nazi, ainda não purificado pela libertação.
Estranhamente não há provas materiais ou testemunhas credíveis dos seus crimes, e esta vez está longe de constituir a excepção. ao passarem sobre um antigo depósito de munições o jovem novato é pulverizado pelo tiro certeiro da omnipresente FLAK. Obviamente que vinga o camarada, destruindo a peça, “acto assinalável do comandante que, pondo em causa a sua segurança vingou o camarada”. É um herói, um exemplo!
E essa terrível sede...Desamparado pelos breves segundos de calma procura que nem um louco qualquer coisa, qualquer alvo. A grande distância os olhos bem treinados adivinham a silhueta de um FW190, sem dúvida um dos últimos. Com a frieza assassina que o caracteriza aproxima-se, esperando a qualquer momento a reacção do outro. Mas este teima em reagir. A coisa está demasiado segura, o alemão baila alegremente na sua mira. Farto, Claus dispara algumas rajadas sobre a cabeça do adversário. Pretende acordá-lo, despertá-lo para a luta...Os resultados são frustrantes: o outro limitou-se a acelerar e a tentar manobras evasivas dignas de um principiante. Um principiante! Era só o que lhe faltava! Do mal o menos, vai-se divertir, começando lentamente a desfazer o avião nazi. Primeiro a cauda, mas só algumas balas para o outro não perder o controlo, depois as asas, e entretanto a carlinga abre-se, deixando antever a saída do piloto que, ciente da sorte deste combate decide à sua maneira render-se. Não pode! Não deve! A luta é até ao fim! Irado e fora de si Claus despedaça o corpo do homem, mandando assim às urtigas uma espécie de código de honra não escrito entre os homens do ar, que faz do inimigo apenas o avião e não o piloto. Merda para as regras, na guerra não há regras!!! E por isso, depois do piloto é a vez do avião, que fuzila até este explodir.
No solo, alguns civis presenciaram mais este crime, dado que o duelo teve lugar apenas a algumas dezenas de metros de altitude. Irados pelo gesto do americano gesticulam com os punhos fechados, insultando-o. É obvio que ele não os ouviu, mas viu...Gira o leme para a direita, colocando-se em paralelo com a estrada, onde mais cinco alvos pedem para serem...São apenas civis, trabalhadores rurais, são apenas alvos, apetitosos para a sua enorme voracidade...Após a morte do primeiro os outros escondem-se onde podem, mas é impossível fugir de Claus, que aprecia de sobremaneira o bailado executado pelos corpos quando as balas os encontram e os transformam em massas disformes de carne e sangue.
Sangue. Claus transformara-se num vampiro, incapaz de viver sem ele, incapaz de viver na terrível calma que se avizinha.
Por um instante é tocado por um estranho humanismo. Ao passar por uma aldeia saúda, abanando as asas alguns miúdos que se entretêm a brincar no adro da igreja.
A paz do cenário campestre depois do gesto nobre impele-o novamente para as recordações.
Na véspera do falhado casamento as histórias sem sentido da infância e adolescência passaram a ter lógica.
Nascera em 1919, filho de um soldado austríaco frustrado pela derrota na guerra 14-18. Este era artista de belas-artes falhado, adepto fanático das suas leituras errantes e confusas e de diferentes correntes ideológicas que naqueles tempos percorriam uma Alemanha ainda mergulhada no caos da derrota. Quando Claus Heirich nasceu, o pai estava a transformar-se em político, apoiado no seu estranho dote para a oratória e apoiado por alguns caciques locais, de limitada autonomia politica que julgavam ter neste homem de 31 anos o instrumento para saírem da obscuridade.
Conhecera durante a sua convalescença por um mero acaso a jovem Alda Heirich auxiliar no hospital e que deu consigo fascinada pelos olhos azuis deste cabo de elite detentor de uma Cruz de Ferro rara num posto tão baixo. Viveu com ele uma intensa paixão de três noites, ao fim das quais ele desapareceu. Deste tempo demasiado curto para ficar na história ficou a criança.
Depois de a abandonar continuou o caminho inexorável para o comando da nação.
Quando se soube grávida, tentou contactá-lo, mas, mesmo depois de o ter conseguido encontrar este recusou-se a reconhecer a criança e chegou memo ao ponto de fingir não a conhecer. Ela afastou-se mas segui-lhe o rasto. Quando Claus nasceu ela contactou-o novamente e informou-o mas este limitou-se a encher-lhe os bolsos com meia dúzia de marcos constantemente desvalorizáveis pela inflação e mandou-a embora.
Por fim desistiu, nunca mais o procurando, nunca mais falando com ele, mas mantendo-se sempre por perto. Por fim o pai chegou a onde ambicionava, e foi pouco depois que ela tentou, por uma última vez obter o reconhecimento do agora adolescente, pois estando o pai agora bem, poderia garantir o futuro de Claus.
Em desespero de causa, e vendo-se atendida por uma mera secretária, ameaçou revelar o caso ao grande público, mostrando cartas onde ele, num raro momento de humanidade admitia a paternidade (as semelhanças físicas começavam a ser flagrantes...)mas o recurso em o perfilhar pelo “incómodo que isso lhe traria no seu encontro com o destino”.
A resposta não se fez esperar. Pouco depois bateu à porta da casa de Alda um homem de gabardina preta. Trazia um recado : se ela falasse ou tentasse falar seria a última vez que o faria...De seguida deu-lhe a documentação necessária para desaparecer do país. Compensação dúbia, mas sem dúvida irresistível.
Nova identidade, nova vida, algum dinheiro para recomeçar, tudo isto desde que desaparecesse. Mais um papel assinado por si a declarar formalmente ser o seu filho, filho de pai incógnito.
Ciente da ameaça, ela apanhou o primeiro comboio e estabeleceu-se na província o tempo suficiente para os seus papéis de emigração lhe garantirem asilo na América.
O seu medo no famoso comboio era de que o pai se arrependesse por tamanha generosidade e os mandasse “para o sítio dos judeus”. Ela vivera num bairro berlinense com judeus e quando os SS os vieram buscar ninguém lhe disse nada, mas ela soube, porque aprendera a conhecer demasiado bem o pai do seu filho.
Nunca revelara a identidade desse pai, até a América entrar em guerra com a Alemanha. Então, contactou os serviços secretos e comprovou a validade das cartas. Apesar de ter sido provada a autenticidade destas, não era útil à causa aliada tal informação que obviamente foi classificada. Novamente as pressões, novamente a assinatura de papeis, novamente a vontade de a ver calada.
Sentindo-se desesperada tentou fazer alguma coisa. Sabia demasiado bem que facilmente a desmentiriam se conseguisse chegar aos jornais, pelo que só lhe restava uma saída : contar a Claus a verdade.
Este inicialmente recusou, mas depois, mais calmo, viu as fotos por ela guardadas, principalmente uma em que ela está abraçada ao companheiro. Comparou com as que já conhecia da juventude deste homem e que o aparelho propagandístico nazi divulgara.
Finalmente acreditou e interiorizou : ele, Claus Phoenix era filho de herr Hitler, aliás, Adolf Hitler “Fuhrer” do império nazi.
A partir desse momento sentiu uma revolta desconhecida, tão forte que apenas num local lhe permitiriam extravasar sem o condenarem. Sentia-se demasiado sujo, demasiado ímpio, e a única forma de se limpar era cortar todos os laços com a nação, com o pai.
Por isso as mortes não o afectavam, faziam parte do exorcismo pessoal, por isso combateu até ao fim da guerra com um fervor estranho mas compreendido pois era confundido com o tal patriotismo guerreiro.
No final do conflito, depois de ter sabido dos campos de concentração ficou ainda mais enojado e, valendo-se do estatuto de herói bem aproveitado pelo seu partido, perseguiu a memória do pai tentando eliminar tudo o que dela restava e compensar as vítimas do Holocausto.
Transformou-se num dos maiores caçadores de nazis e defendeu acerrimamente a criação do estado de Israel, debruçando-se em iniciativas, viajando sem cessar, não parando de divulgar a causa sionista. Apesar de naturais oposições chegou a Senador e teve uma actividade politica e social a todos os níveis meritória. Chegou mesmo ser indiciado para as primárias, mas o apoio aos judeus revelou-se prejudicial, pelo que não passou duma mera hipótese.
Mais tarde, quando a idade acalmou o fervor, foi promotor da primeira visita de um chefe de estado alemão a Israel. Em paralelo serviu de intermediário numa gravíssima crise israelo-árabe, resolvida em parte devido à sua intervenção e peso político.
Estas iniciativas valeram-lhe a atribuição de um Prémio-Nobel da paz.
Quando morreu, velho e respeitado foi enterrado a seu pedido em solo Israelita.
Como derradeiro sinal de respeito as autoridades de Tel Aviv prestaram-lhe a derradeira homenagem ao conceder-lhe um enterro equivalente ao de um chefe de estado.
-Não! Não! Não!
-Senhor, o que é que se passa?
-Dê-me mais pílulas para dormir! Já mal posso com estes pesadelos !
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